O GUIA E A ALMA GÊMEA

Foi em 1986 que o Belloni teve um encontro imediato com um desses mentores espirituais que a gente não vê, mas acha que devem estar bem ali. Aconteceu durante uma projeção astral.

Ele lembrava bem. Primeiro a projeção era outra coisa: ele estava numa casa estranha e antiga, dessas titubeantes de vetustez, e havia encontrado mais uma daquelas almas gêmeas que a gente encontra nas projeções astrais, ama profundamente, troca eternas juras e... esquece imediatamente a cara dela, assim que desperta no físico.

De vez em quando ele tinha dessas projeções, e realmente ficava muito danado nas calças, por não saber lembrar, no depois, aquelas coisas que eram tão importantes durante o desenrolar do lance...

E foi por isso que ele começou a pedir aos mentores - que naquele tempo o pessoal chamava de guias - para que eles o ajudassem a ficar lucidamente esperto nessas projeções, de forma que pudesse, pelo menos, memorizar a cara das moças astrais a quem jurava amor eterno.

E foi então, quando ele estava naquela projeção do começo da história, com aquela tal garota astral que era sua alma gêmea, que ele de repente teve um estalo e as coisas começaram a ficar mais claras para ele.

Primeiro, ele viu que estava se distanciando daquele ele mesmo que se afundava embolado num etéreo sofá-cama astral (a essas alturas a coisa lá com a alma gêmea estava pegando fogo) e, afastado, passava então a assistir, super-conscientemente, àquele filminho pornô onde ele, para seu próprio embaraço, era um dos astros principais.

Foi aí que a voz do mentor, vinda da fileira de trás do cine astral (pois o cenário agora parecia um cinema, chique no último, com poltronas estofadas, som estéreo e tudo mais que a indústria cinematográfica podia oferecer em 1986) se fez ouvir:

- Tá vendo?

- É, estou...

- Então... Lembra agora quem é ela, a alma gêmea lá da tela?

- Claro, estou super lúcido, consigo lembrar até da capa de plástico quadriculado em verde e branco, da minha primeira cartilha ...Presa com durex transparente... Etiquetinha de papel branco, meio gasta nos cantos, com o meu nome escrito em cursivas letras maternas...

- Então... quem é ela?

- É uma criaturinha que vi no ônibus, uma vez. E nunca mais. Num dia em que eu havia brigado com a patroa em casa, e estava aporrinhado, indo pro trabalho...

- E...

- E olhei essa menina, achei-a vagamente simpática e perguntei ao universo por que é que eu não a havia conhecido, em vez da jararaca, e não havia me casado com ela, em vez daquela cascavel, e sido feliz com ela, em vez de ter que agüentar infinitamente as coisas que eu agüentava lá da surucucu que eu tinha em casa.

- E depois nunca mais a viu, e esqueceu o assunto, certo?

- Sim, foi isso...

- Mas seu inconsciente não esqueceu. E vendo esse seu desejo não realizado a rodar perdido por aí, ele, inconsciente, o plantou bem no meio do astral, que também é o plano dos desejos. Um pouco tardiamente, é fato... Mas esperar que o inconsciente seja coerente, nesses negócios de tempo, é uma ilusão...

- Então elazinha ali é apenas uma forma-pensamento que vaga por aí, feito anima (1) perdida, holografia etérea, súcubo (2) descartável, personagem à procura de autor?

- Ela não é nada. Matéria astral... vai se dissolver com a luz do sol...

- E o senhor, quem é o senhor, cuja face eu também não consigo ver?

- Pois é, Belloni... Lembra aquela vez em 1971, quando você brigou com seu pai, chamando-o de velho reacionário intransigente, e depois ficou pensando em como seria bom ter um guia que lhe entendesse de verdade e compartilhasse com você as coisas que você tinha a dizer? Então... olha eu aqui... Meio atrasadão, mas todo ouvidos...


- Bene –


P.S.: Recortai e colai em vossos blogs: “Nossas verdades mais íntimas são como frágeis biscoitos biju que tentamos manter intactos entre os dedos, enquanto fazemos o grande looping nesta vertiginosa montanha-russa chamada vida.”
 
- Notas:
1. Anima (do latim): alma.
2. Súcubo: Nome pelo qual os europeus da idade média denominavam os espíritos trevosos (considerados como demônios noturnos) com aparência feminina, que atacavam sexualmente as pessoas durante o sono. Em caso contrário, quando o espírito assediador sexual tomava uma aparência masculina, era chamado de “Íncubo”.

Imprimir Email