ÚLTIMA SAÍDA

Estava tão acostumadinho com essas saídas do corpo, que nem percebeu que aquela havia sido a última. Só quando tentou entrar novamente, já de manhãzinha, é que percebeu que aquela já não era sua morada. Ficou ali parado, quieto, um corpo de luz radiante, olhando um outro corpo já envelhecido, embaçado, tão marcado pela vida.

Pensou vagamente nas agruras das quais estava agora liberto, aquelas coisinhas chatas e banais do dia-a-dia, tais como aluguel, canos furados, bolhas no calcanhar, contas de luz e motoristas de táxi...

Lembrou-se da última namorada, descasada como ele e tão indecisa a se unir outra vez a um homem... Bom, esse problema dela estava resolvido, pelo menos temporariamente...

Esta lembrança deu-lhe vontade de agradecer ao antigo corpo os bons momentos que passara dentro dele.

Queria fazer algo como beijar aquela face densa, afagar aqueles cabelos tão humanos, mas sabia que seus dedos atravessariam tudo aquilo, da mesma forma como ele próprio já atravessara a barreira para o "lado de lá".

Agora não tinha mais jeito... precisava arrumar forças para ir embora de vez dali.

Lembrou-se de um mestre que dizia:

"Quando desencarnar, vá embora logo... Não fique para o próprio enterro... É super deprimente, acredite..."

Sim, era isso... Adeus à matéria... Altos vôos o esperavam, mergulhos na Luz Suprema, adeus amigos, adeus Solange, adeus mundo cruel...

Ah, o mundo material... que grande ilusão.... finalmente livre dele, do ego, do self, do superego, do id, das tentações, das paixões, do sexo gostoso com a Solange, das tardes com os amigos, dos longos verões e dos banhos de mar, do vento das estradas fustigando-lhe as faces, do céu estrelado que ele tanto gostava de olhar...

Puxa, se tivesse mais um pouco de tempo no mundo físico, só um pouquinho mais, para deixar as coisas em ordem, preparar as pessoas que o amavam, quem sabe cumprir alguma missãozinha ainda pendente...

Pediu aos amparadores, jurando que ia usar esse tempo só para obras de luz, pediu a Deus, em quem ele nunca tinha acreditado muito...

Viu que era inútil e controlou-se. Resolveu atravessar qualquer parede e ir em frente, sem se preocupar para onde iria, sem olhar pra trás....

Moveu-se, flutuando graciosamente.

Antes de chegar à parede, sentiu um puxãozinho nas costas... Leve, a princípio, mais forte depois... Então, o cordão * não...???

Nem pensou muito... voltou correndo e atirou-se sobre o velho corpo, fundindo-se nele...

Desperto, moveu os dedos com imensa satisfação e saudou, com um sorriso, um raio de sol que se infiltrava janela a dentro. Mas logo sua fronte se anuviou... Então tudo tinha sido só um sonho, uma projeção, um pesadelo lúcido... Quer dizer que continuava amarrado ao físico, ao samsara **, às provações desta vida tão ingrata? Balançou a cabeça, desanimado, e pensou: Ah, que coisa mais chata...

- Por Bene -

- Nota de Wagner Borges: Bene é o apelido carinhoso do nosso amigo Benedicto Cohen. Ele é participante da lista Voadores na Internet. É tradutor de livros e pesquisa há muitos anos as projeções da consciência, o Xamanismo e os temas espirituais de forma universalista.
- Notas do texto:
* Cordão de prata: o elo de ligação energética entre o corpo físico e o corpo espiritual durante uma viagem para fora do corpo (viagem astral, projeção da consciência).
** Samsara (do sânscrito): A roda reencarnatória compulsória.

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