O ILUMINADO

Nascido no século V a.C., o príncipe Siddhartha Gautama abandonou a herança de sua realeza terrena para buscar a iluminação e indicar ao povo o caminho da libertação

- Maria Aparecida Romano -
É na vivência espiritual e nas práticas religiosas altamente elaboradas que o homem encontra sua verdade. Eis a essência do bramanismo, religião da índia antiga que tem como escrituras sagradas os Vedas, Bramanas e Upanisads (conhecimento divino), textos considerados como as revelações de Brama (Deus Supremo) e cujo aspecto mais importante é a teoria do karma, ou seja, a crença na evolução através do sofrimento a que o indivíduo é submetido em suas várias existências terrenas, que pode ser determinado pelos atos cometidos nas vidas anteriores. Essa milenar teoria vem sofrendo alterações com o decorrer do tempo, através das diferentes colocações filosóficas.

A partir do período primitivo do bramanismo, desenvolveu-se na índia uma união de crenças, doutrinas e ritos ao lado de importantes realizações do pensamento metafísico. O conjunto dessas manifestações religiosas elaboradas a partir do início da era cristã recebeu a denominação de hinduismo, considerado uma continuação histórica do bramanismo. Embora conservando os textos sagrados brâmanes, os hindus têm a devoção como ponto central de sua doutrina, onde a salvação está no amor, não no sacrifício. Durante seu desenvolvimento, a filosofia hinduísta incorporou o regime de castas, criando o "dharma" (soma total das regras de comportamento para todos os aspectos da vida) para cada uma delas.

O nascimento de Siddhartha Siddhartha Gautama, filho único de Shudodhana, rei dos shakya, e da rainha Maya Nevi, nasceu em 563 a.C. no pequeno reino de Kapilavastu, situado aos pés do Himalaia, em um território onde hoje está o Nepal. Ao buscar a plenitude espiritual, o herdeiro do trono, cujo nome significa "aquele que atinge seu objetivo", seguiu os mais duros preceitos para atingir o estágio da iluminação, formulando os princípios de uma nova doutrina, cuja característica principal é a importância da experiência individual.

Diz a lenda que, momentos antes da concepção, a mãe de Siddhartha foi visitada por um elefante branco em um sonho. Desse encontro, ele nasceu com 40 dentes e dizendo ser "o senhor do mundo", conhecendo 74 alfabetos, inclusive o chinês, e com mais de 80 sinais físicos incomuns, identificados pelos sábios do reino como sendo de um grande homem que libertaria a humanidade dos sofrimentos.

Educado na opulência da corte e confinado pelos muros do palácio paterno, no qual tudo parecia perfeito e harmonioso, o jovem rajá cresceu ocioso e galante, ocupado em torneios, caçadas, combates de fronteira e no cortejo à bela prima Yashodhara, com quem se casou muito cedo. Porém, aos 29 anos de idade, Siddhartha teve sua crise religiosa, manifestada através de quatro encontros, conforme a tradição.

Acompanhado por Xanna, seu cocheiro, resolveu empreender quatro passeios sucessivos fora do palácio e foi surpreendido por uma realidade que não conhecia. No primeiro, viu um velho enrugado e trêmulo apoiado em uma bengala, perguntando ao seu servo o que era aquilo. "É a vida, meu senhor", respondeu-lhe Xanna, repetindo isso quando Siddhartha se defrontou com um doente coberto de chagas e um cortejo fúnebre. Ele nada sabia sobre a velhice, a doença e a morte, mas constatou que, no mundo terreno, o ser humano está sujeito a essas misérias.

No quarto passeio, avistou um homem esfarrapado e esquelético que, apesar de pedir esmolas com uma tigela, mostrava o olhar sereno de um vencedor. Era um monge mendicante, que tinha a cabeça raspada e vestia apenas um manto amarelo. "A vida me atemoriza, então renunciei a tudo, de modo que não precise encarnar novamente e sofrer mais uma vez a velhice, a doença e a morte", dizia esse homem que venceu a dor, o sofrimento e tudo o que o tempo consome. Profundamente abalado, Siddhartha quis descobrir o segredo dessa imortalidade e doá-la ao mundo. Regressando ao palácio, informou ao pai sobre sua disposição, mas o rei tentou detê-lo, colocando guardas em todas as portas do reino.

Em busca de respostas

Certa noite, após lançar um último olhar à esposa e ao filho Rahula, "o desejado", que havia acabado de nascer, Siddhartha chamou seu cocheiro e, montando seu cavalo, atravessou as portas da cidade, que teriam sido abertas sem rui dos pelos deuses, conforme a lenda. No recesso das florestas, o príncipe se despojou de sua roupa tecida com primor, de seu turbante real e de sua espada com o punho cheio de pedras preciosas, entregando estes objetos ao fiel cocheiro e pedindo-lhe para que os devolvesse ao seu pai. Siddhartha raspou a cabeça e cobriu seu corpo com um manto amarelo, como convinha a um monge mendicante que pretendia ser, partindo em busca de uma resposta para as aflições do mundo.

Vagou pelo norte da índia por muitos anos, encontrando-se com eremitas brâmanes que caminhavam por ali. Sob sua orientação, Siddhartha se pôs a meditar, aprendendo as tradições que falavam da reencarnação e resgate de vidas passadas. Quando sentiu que tinha aprendido o suficiente, deixou os eremitas e obteve cinco monges ascetas como discípulos, que partilharam de seu esforço em se tornar Buda. Nesse intuito, construiu para si um abrigo às margens do rio Nairanjana, onde praticou severas mortificações, faltando pouco para que morresse de fome. Diz a lenda que, nessa época, alimentava-se com um grão de arroz por dia.

Sua forma de vida, sobretudo com determinação e perseverança, foi, aos poucos, atraindo a atenção de homens que dele se aproximavam em busca de orientação espiritual. No entanto, decorridos seis anos de jejuns e penitências, Siddhartha se encontrava esquelético e enfraquecido, podendo constatar que as sucessivas infecções que debilitaram seu organismo o impossibilitavam de meditar como deveria e o afastavam cada vez mais de seu verdadeiro objetivo, pelo qual havia renunciado à vida mundana. Então, empunhou uma tigela de esmolas e foi mendigar alimentos nas aldeias e cidades. Vendo isso, seus cinco discípulos o abandonaram, por entenderem que ele já não estava mais resistindo à tentação.

Siddhartha ignorou a atitude de seus discípulos, sentindo que havia chegado a hora de seu despertar. Alimentou-se de uma comida à qual os deuses tinham misturado seu sabor e descansou durante um dia. Ao entardecer, aproximou-se de uma árvore e ali, no centro da Terra, com o rosto voltado para o Oriente, sentou-se no mesmo lugar que todos os Budas anteriores tinham ocupado no momento de sua iluminação. Imóvel e impassível, Siddhartha resistiu a todos os louvores e ações. Sozinho, penetrando em planos de concentração cada vez mais profundos, ele conquistou o conhecimento de suas vidas anteriores, a sagacidade divina, a compreensão das origens e, finalmente, em uma linda noite de lua cheia, a plena iluminação, o grande despertar que buscava.

Assim, aos 35 anos de idade, Siddhartha se tornou um Buda, que, em sânscrito, significa "o desperto" ou "o iluminado". Não era mais um indivíduo ou um nome, pois havia atingido a libertação neste mundo e naquele instante. Em seu êxtase, experimentou o paraíso ou "nirvana", no qual se alcança o estado de beatitude de santo perfeito, liberto de renascer, lugar onde não há nascimento ou morte e que sedia o fim do sofrimento do homem. Buda não quis permanecer nesse estado, resolvendo voltar ao convívio humano para transmitir seu aprendizado e consagrar o resto de seus dias para pregar a verdade libertadora. A partir daí, seguiram-se 45 anos de intermináveis peregrinações dele e seus discípulos, que foram se espalhando por toda a Índia.

As Pregações de Buda

Siddhartha Gautama partiu para a cidade de Sarnath, onde encontrou seus antigos companheiros. Lá, desenhou um círculo no chão para representar a roda da existência, que leva ao nascimento e à morte. Seguiu depois para Benares, junto com os cinco monges que tinham sido seus primeiros discípulos. No Parque das Gazelas, ele lhes ensinou a doutrina do "caminho do meio", situado entre os extremos do prazer e da mortificação, além da submissão ao sofrimento inerente à natureza humana e da necessidade de extirpar suas causas, os apetites do desejo. Os discípulos também atingiram a iluminação e foram autorizados, agora em número de 71, a pregar o budismo. Assim, nascia a Comunidade (Sangha), a ordem dos mendicantes budistas.

Em Urunda, onde morou algum tempo, Buda teria feito vários milagres em uma escola de brâmanes adoradores do fogo. Em reconhecimento, o mestre Kassapa e todos os seus 500 alunos resolveram aceitar a diretriz budista, sendo admitidos na ordem. Em Gaiasisa, ele pronunciou o célebre sermão do fogo. Todas as sensações, como a língua e sua gustação, o espírito e o pensamento, estão em fogo: o fogo do apetite, do ressentimento, da ilusão, da morte e da dor. Foi um sermão que esclareceu perfeitamente a natureza do nirvana (no sentido fundamental da palavra, a "extinção" desses fogos). A seguir, foi a Rajgir, onde pregou perante um rei e uma assembléia de brâmanes, conseguindo a conversão de todos eles.

Durante suas viagens, Buda regressou à sua cidade natal e seu pai sofreu muito ao vê-lo, pelas janelas do palácio que havia abandonado, pedindo esmolas. Mas Siddhartha beijou os pés do pai em um gesto de extrema humildade. "O senhor pertence a uma linhagem de reis, mas eu pertenço a uma de budas que também viveram de esmolas", disse. O rei se lembrou da profecia que foi feita no nascimento do filho e se reconciliou com ele. Em seguida, Buda visitou sua esposa, que lhe contou ter passado a seguir todas as suas regras, e mandou seu filho Rahula reclamar a herança, pois ele agora era o herdeiro do trono. Os dois, que se revoltaram por muitos anos pelo fato de terem sido abandonados, compreenderam sua missão e fundaram uma comunidade na qual seus ensinamentos foram transmitidos.

Nas peregrinações e pregações de Buda, homens impressionados com o que ouviam resolviam segui10 e, assim, novos discípulos foram se juntando ao grupo, organizando-se as comunidades. O príncipe negociante Anatha Pindilla se converteu ao budismo, adquiriu o Jardim Jetavana por um alto valor e construiu um magnífico mosteiro, convidando Buda para morar no local. O mestre fez dali a sede principal de sua ordem e os discípulos, cada vez mais numerosos, passaram a residir nos conventos oferecidos pelos ricos fiéis, ao invés de permanecerem continuamente como errantes. As mulheres devem sua admissão na ordem a Ananda, primo-irmão de Buda, monge budista em Kapilavastu desde o segundo ano de prédica e, depois, confidente pessoal do mestre.

A partida do "Olho do Mundo"

Em 483 a.c., aos 80 anos de idade, Buda pressentiu que morreria de intoxicação, após ingerir um alimento deteriorado. Com o auxílio de fiéis discípulos, viajou até Kushinagara, deitando-se sob uma árvore no bosque local, onde ficou rodeado de mendicantes e leigos que, em tributo de respeito ao mestre, permaneceram em absoluto silêncio. Ele chamou Ananda e lhe disse: "Estou velho e minha peregrinação nesta vida está próxima do fim. Meu corpo parece uma carroça que já foi usada e se mantém funcionando apenas porque algumas de suas peças estão precariamente amarradas com tiras de couro. Chegou o momento de partir". Buda deu instruções a seu primo-irmão para incinerar seu corpo e construir um túmulo para guardar suas cinzas. Foi então que ele disse suas últimas palavras: ´Tudo que foi criado está sujeito à decadência e à morte. Tudo é impermanente. A única coisa verdadeira é trabalhar a própria salvação com amor, perseverança e, sobretudo, muita disciplina".

Buda desencarnou sorrindo. Somente os jovens choravam, lamentando que o "olho do mundo" tivesse se fechado tão cedo, pois os mais antigos se conformavam, lembrando que todas as coisas estão sujeitas à corrupção do tempo, mas a verdadeira lei não envelhece e não morre. Seu corpo foi cremado e suas relíquias, divididas em oito partes, foram distribuídas aos chefes de clãs, que ergueram monumentos para guardá-las. Com a simples visão desses túmulos, disse o mestre para Ananda, muitas pessoas poderiam encontrar a paz e a felicidade. Seus ensinamentos, com o decorrer dos séculos, foram codificados em forma de religião filosófica, diversificando-se pela Ásia.

Segundo a tradição indiana, a palavra "avatar", do sânscrito "avatãr", significa "uma das encarnações de um deus". Assim, Buda foi um dos avatares que passaram pelo planeta Terra como emissário divino, fornecendo subsídios valiosos para lançar novas luzes sobre os problemas da vida terrena. Cognominado por alguns como "o olho do mundo" ou Shakyamuni, o "sábio silencioso dos shakyas", converteu reis e príncipes em suas peregrinações e pregações, mas não deixou nada escrito. Criou uma doutrina nova, aberta às mais diversas condições sociais, em oposição ao formalismo dos brâmanes. A crença no budismo se deve à experiência de uma vida plena de abnegação e sacrifícios de Siddhartha Gautama, o Buda, não se confundindo com uma religião revelada.

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