NÓS MESMOS CRIAMOS AS RELIGIÕES

Tanto as religiões como a ciência enfrentam um desafio nos tempos recentes, que é o de compreender a força misteriosa que move o universo e encontrar formas interessantes de apresentar respostas para as questões transcendentais.

Por Francisco Claussen
A religião foi sempre um fenômeno presente em todas as culturas e civilizações, e as diferenças entre elas provêm da maneira como cada uma concebe o mundo superior e as relações com os homens. Todas as religiões, sem exceção, têm em comum a sua história, a explicação sobre a existência do homem, seus ritos e sua tradição. O conceito de origem ou causa primeira, instaladora e reguladora do cosmos, é identificada de algum modo com o bem supremo ou com a verdade eterna e absoluta, e está presente, sob diferentes formas, em todas elas.

Não se sabe com exatidão quando o pensamento religioso surgiu na espécie humana. A partir de um determinado momento do período paleolítico, há dezenas de milhares de anos, o homem passou adorar rituais que indicavam uma crença no sobrenatural.

As pesquisas atuais sobre crença e religiosidade apontam números impressionantes, especialmente no continente americano. Estados Unidos e Brasil têm um forte traço em comum: cerca de 90% da população declaram acreditar em Deus. Os EUA são a exceção entre os países industrializados. Na Alemanha, o número dos que declaram crer em um Criador cai para 53%. Na Suécia, o número de crentes é o mais baixo do mundo desenvolvido: 36% da população.

E, embora a ciência tenha progredido de uma forma espantosa, hoje, muitas vezes, ela mais intimida o leigo do que oferece respostas compreensíveis. Ouvir explicações de um cientista às vezes é quase como tentar encetar diálogo com um ET. Da mesma forma, a morte de Deus operada por Marx, Freud e alguns outros, e sua substituição pela ciência, também não foi um espetáculo de alegre libertação. Na definição do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre, o desaparecimento de “uma das maiores idéias humanas de todos os tempos deixou na consciência dos homens um buraco em forma de Deus” (Sartre foi um dos coveiros mais recentes do divino, propondo que, mesmo que Deus existisse, seria necessário rejeita-lo, pois a idéia dele nega a nossa liberdade).



Se a importância histórica for medida pelo impacto no maior número de pessoas, pode-se afirmar que nenhum evento isolado nos tempos antigos, e talvez em toda a história humana, teve tamanha repercussão como o nascimento de Cristo. Pode-se ter relativa segurança de que aconteceu em Nazaré, na Palestina, e menos certeza de quando foi, embora a data provável seja 6 a. C.

Ninguém desconhece a história que se segue, crendo ou não em sua origem sagrada. Um judeu das montanhas da Galiléia, com reputação de doutrinador e capacidade curar as pessoas, aparece em Jerusalém, aos 33 anos, durante a Páscoa judaica. Em três dias, desenrola-se em torno dele o drama de solidão, humilhação e morte que acompanha a humanidade há vinte séculos. Ele é preso, julgado, condenado por traição e executado na cruz ao lado de criminosos comuns. Nenhum historiador registrou inequivocamente sua passagem pelo mundo dos homens. Mas dois mil anos depois que os eventos acima ocorreram, segundo os quatro evangelistas, Jesus é o personagem dominante da vida ocidental. Mesmo entre as pessoas que não fazem parte do rebanho atual de seguidores do cristianismo, ele é um símbolo poderoso.

Mais dois mil anos se passaram, e a história de Jesus de Nazaré ainda é um desafio. Quase tudo que se sabe sobre ele está nos Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João. Do nascimento até o batismo, na idade adulta, praticamente não há referência, nem mesmo nos Evangelhos. Apesar da névoa espessa que cerca sua biografia, Jesus foi, individualmente, a mais influente personalidade de toda a história humana.

A imagem de Jesus está bem assentada pela iconografia cristã, mas, na verdade, os Evangelhos não dão qualquer pista sobre o aspecto pessoal do filho de Maria. A imagem que se tem de Jesus é a de um produto artístico de pintores europeus que viveram um milênio e meio depois de Cristo. Nessas pinturas, ele tem cabelos castanhos e olhos claros, uma combinação altamente improvável.



Algumas tentativas de recompor a imagem original foram realizadas. Por exemplo, tendo como base o crânio de um judeu palestino do século I, cientistas ingleses reconstruíram um rosto que se aproximaria do tipo físico de Cristo. Por outro lado, os ossos de um homem que foi crucificado na mesma época em que Jesus, indicam que a forma de execução na cruz era diferente do que se conhecia: o condenado era pregado pelos dois calcanhares e tinha os braços amarrados pelos punhos.

Das relíquias relacionadas a Jesus, a mais intrigante é uma peça de linho com 4,36 metros de comprimento por 1,10 de largura: o chamado Santo Sudário. Diz a tradição católica que a peça serviu de mortalha para o corpo do filho de Deus, assim que o desceram da cruz. O pano tem marcas nítidas de um rosto com barba e manchas condizentes com as chagas de Cristo. A relíquia, guardada em Turim, é conhecida e venerada desde 1350. Curiosamente, foi o avanço da tecnologia que tornou sua autenticidade polêmica. No final dos 80, o tecido foi analisado por três ou quatro equipes independentes e datado com radioatividade. A conclusão foi unânime: o pano tinha sido produzido na Idade Média, entre 1260 e 1390.

O diagnóstico não encerrou o assunto. Estudos mais recentes encontraram vários indícios de que seria muito mais antigo. Primeiro, foram traços de sangue humano no tecido. Depois, submetido a exames tridimensionais por computador, mostrou que só se poderia ter aquela imagem se o sudário realmente envolvesse um corpo. O achado mais instigante são vestígios de pólen nas tramas do tecido. São de uma flor típica do Oriente Médio, que floresce numa época condizente com a da crucificação. A Igreja Católica, que havia aceitado a conclusão dos especialistas de 1988, hoje considera o Sudário um assunto em aberto que exige novas e apuradas análises científicas. Não é considerado oficialmente como autêntico; a conclusão sobre o manto é de que nada há de certo sobre ele.



No primeiro século da era cristã, os judeus da Palestina não tinham sobrenome. Quando o prenome não bastava para a identificação, juntava-se a ele o local de origem – daí Jesus ter ficado conhecido como Jesus de Nazaré, a cidade da Galiléia onde foi criado. Pouco se sabe de sua vida. Jesus era pobre, mas não destituído. Abaixo de sua classe, a dos pequenos artesãos e agricultores, havia ainda uma legião de miseráveis. Numa atitude incomum em seu tempo, Jesus contemplou essas pessoas com compaixão destacada em suas pregações. Dedicou igual atenção às prostitutas, aos adúlteros, aos ladrões e à odiada categoria dos cobradores de impostos, símbolo da dominação romana sobre Palestina.

Ao longo dos séculos, consolidou-se a idéia de que a palavra de Jesus foi com uma febre a varrer a Palestina. No entanto, de uma perspectiva estritamente histórica, tudo indica que não foi bem assim. A pregação do Nazareno provavelmente não durou um ano inteiro, e profetas não eram um artigo tão raro naqueles tempos. Os milagres, exorcismos, profecias e ensinamentos de Jesus atraíam muita gente, mas é provável que não se tratasse de multidões. Hoje é fácil enxergar a beleza da mensagem de Jesus, mesmo que não se acredite em sua origem sagrada. Por volta do ano 30, contudo, essa beleza tinha algo de subversivo. Ao Império Romano não agradava que alguém andasse por seu território dizendo que o Reino de Deus era o único verdadeiro. À hierarquia religiosa judaica também não soava bem que um jovem sem profissão ou título definidos fosse anunciado como o Filho de Deus – e mais ainda que convidasse imorais e gente de outras religiões a compartilhar desse Deus. Essas duas coisas já bastariam para fazer de Jesus um alvo.

É certo que nem os doze apóstolos de Jesus esperavam por um desfecho tão trágico. Mas foi por causa desse fim prematuro e aparentemente inglório que, nos anos seguintes à morte de Jesus, um embrião de Igreja começou a surgir. A razão está num dos maiores mistérios ligados a Jesus, e também um dos dogmas mais sagrados do cristianismo: a Ressurreição.



A hegemonia da Igreja Católica Romana começa o novo milênio mais abalada do que nunca: a maior religião do mundo passou a ser o islamismo. O número de muçulmanos supera o de católicos romanos, e não há religião que cresça no ritmo do islamismo: 16% a mais de crentes a cada ano. Há várias razões para as mudanças ocorridas no ranking da fé.

O contato direto com Alá, sem intermediários – esse é um dos grandes trunfos do islamismo na conquista de cristãos para as fileiras muçulmanas. “A força do Islã está no fato de que é uma religião extremamente acessível. Não há hierarquia, a fé pode ser praticada em qualquer lugar e não exige muito engajamento de seus adeptos”, analisa o dominicano Frei Betto.

Os ensinamentos contidos no Alcorão têm força de lei. Os muçulmanos acreditam na ressurreição dos mortos, no inferno e no paraíso. Misericordioso, benévolo, caridoso, clemente, pacificador – o Deus do Islã é um só, mas pode ser identificado por 99 adjetivos expressos no Alcorão. Um ditado repetido entre os fiéis diz que “Deus está mais perto de nós do que nossa veia jugular”. São metáforas simples, ma repletas de sentido místico, e fascinantes para muitos. Muito mais atrativas e confortadoras do que a formalidade católica.

Desde 1979, quando a revolução iraniana, liderada pelo clero xiita, derrubou uma monarquia pró-Ocidente, o Islã virou sinônimo de fanatismo e terrorismo. Os radicais existem, mas são minorias. Na Arábia Saudita, berço do islamismo, quem rouba tem a mão cortada. Quem mata injustamente é executado em praça pública. São resquícios de um radicalismo cada vez menos praticado. Hoje, a maioria dos países muçulmanos reconhece os direitos das mulheres. A elas já é permitido trabalhar fora. Os tradicionais véus que cobrem o rosto e a cabeça das mulheres convivem em paz com calças jeans e tênis da moda.



Há ainda um novo fenômeno que começa a ser captado pela s pesquisas e está chamando a tenção dos estudiosos do assunto, no Brasil e no exterior. Boa parte dos fiéis está olhando para a religião como se estivesse diante de uma prateleira de supermercado. Empurrando seu carrinho, a pessoa escolhe os itens que mais lhe agradam entre os oferecidos. Assim, é comum ver alguém que se diz católico fazer três desejos ao colocar uma fitinha do Senhor do Bonfim, e ainda freqüentar um centro espírita. Ou um judeu reavaliar sua espiritualidade percorrendo o caminho de Santiago de Compostela. Muitas pessoas dizem ser católicas porque se sentem assim, embora não freqüentem a igreja. Os praticantes do candomblé quase que invariavelmente têm fé nos santos do catolicismo. Nos casos mais extremos desse fenômeno, as pessoas criam a própria religião, através da qual mantêm um contato sem intermediários com o divino.

O desafio de cada denominação religiosa é como se tornar interessante para o fiel na resposta que preparou para as indagações transcendentais que atormentam a humanidade há milênios. Há dois ramos no Brasil que estão fazendo isso de forma espetacular. São eles as seitas pentecostais e o Movimento de Renovação Carismática.

Apesar de algumas especificidades brasileiras, o fato de uma alta taxa de religiosidade conviver com certo descaso em relação aos rituais tradicionais não é incomum no mundo. A verdade é que hoje existe um espaço secular muito maior nas sociedades. Antigamente, o cotidiano, as questões sociais e até as de saúde passavam pela religião. Isso mudou. “O brasileiro acredita em céu e inferno”, diz Regina Novaes, antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “mesmo sem ser católico praticante ou saber os são esses lugares, porque esses conceitos são intrínsecos à cultura brasileira. Foram passados de geração em geração”.

É interessante observar que a ciência enfrenta um paradoxo parecido com o da fé. Por mais que avance, não consegue se desvencilhar da idéia de Deus. O físico Leon Lederman, Prêmio Nobel em 1988, é autor de um livro no qual defende que a ciência deve estudar a “hipótese teológica”. Segundo ele, no atual estágio de conhecimento, o grande desafio dos cientistas é a explicação do fenômeno divino.

É uma área em que as mentes mais poderosas do século 20 se enredaram. Albert Einstein, o criador da teoria da relatividade, que propôs formas inteiramente diferentes de pensar o tempo, o espaço e a gravitação, quase se rendeu a Deus com o conceito da “constante cósmica” – uma espécie de número mágico que ajudava a fechar suas equações. “Nós vemos o universo maravilhosamente ordenado, e nosso pensamento limitado não pode compreender que move a constelação”, dizia ele. Stephen Hawking, talvez o físico mais influente depois de Einstein, pensa parecido. “Ou encontramos explicações científicas para certos mistérios da criação do universo, ou teremos de aceitar que ele foi feito com o objetivo claro de abrigar a vida humana”.

Extraído da revista Sexto Sentido – Ano 5 - Número 53

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