OS SONS DA VIDA

Compreender e saber utilizar os sons é fundamental em nossa busca pela comunhão com o sagrado, com a vida que nos cerca e em nossa busca pela harmonia.

Por Marilu Martinelli
Nas culturas e tradições espirituais de todos os povos, existe a busca pela experiência transcendental, ou numinosa, como dizia Carl Gustav Jung. Todos ansiamos por uma experiência que rompa couraças emocionais e que nos conecte com Deus, a pura expressão do amor.

Desde as mais remotas eras o homem tem essa sede de se aproximar do Criador e n’Ele se perder e se encontrar. Do Verbo nasce a sinfonia universal que se propaga e reverbera constantemente, traduzindo os diversos nomes de Deus e recriando mundos. O circuito sagrado da vida é formado por vibrações e ressonâncias. E os sons da vida se enraízam no Som Primordial, e deste se originam todas as formas animadas e inanimadas. Podemos dizer que somos luz e som em constante vibração e ressonância com tudo que se manifesta na Terra e no universo. Por isso, encontramos em todas as tradições sons mântricos, nomes sagrados e orações que auxiliam a mente a se conectar com o sagrado som primevo. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (João 1,1 ).

Na Índia, a escolha e a repetição de um dos nomes de Deus é chamada pelos jogues namasmarana e segundo eles, é uma prática que acalma a mente e preenche o espírito de divina bem-aventurança. Em todas as culturas, existe o reconhecimento de uma dimensão essencial do ser humano, e o nome de Deus, falado ou cantado, é o meio para se atingir essa dimensão superior. As escolas iniciáticas da Antigüidade indicavam como exercício espiritual recitar diariamente os nomes e cantos sagrados como a linguagem adequada para o espírito falar com Deus. E a antiga medicina sacerdotal do Egito e da Grécia considerava os cânticos, orações e mantras, fontes curativas do corpo e da alma.

Mantra é uma palavra em sânscrito formada por manas (mente) e tra (por meio de), que indica movimento. Os sons mântricos conduzem a mente para a interioridade e para o domínio do não-pensamento, da não-dualidade, onde não há seqüência lógica nem linearidade.



DESDE TEMPOS IMEMORIAIS, O SER HUMANO SE VALE DA MÚSICA sagrada para curar o corpo e a mente, e também para inspirar o desabrochar da beleza e da excelência humana. Os egípcios, indianos, chineses, gregos, tibetanos, japoneses, caldeus e hebreus, assim como os indígenas norte-americanos, brasileiros e das Américas do Sul e Central, os aborígines da Austrália, Nova Zelândia, África e Polinésia, sempre incluíram os sons sagrados nos seus rituais iniciáticos e curativos, e nas práticas espirituais em geral.

A cosmogonia Tupi afirma que o homem é o som que ficou em pé. Tupã, o Grande Som, cria o tupi pelo som, e o som toma forma humana. O que sustenta o homem em pe é a flauta criada por Tupã, e que produz os sete sons, sendo que o último é o silêncio. Os guaranis também harmonizam a energia vital através dos sons vocálicos. Para alguns povos nativos, ainda hoje o tambor ressoando e se propagando pelo ar anuncia rituais de transmutações e momentos de louvor, arrebatando as mentes para novas estâncias de aprendizado.

Os sinos das catedrais e os gongos dos templos budistas sacralizam a atmosfera quando soam, assim como o som dos cilindros de oração dos templos tibetanos. O Pneuma, o Sopro Divino, se apresenta e se reproduz nos instrumentos de sopro e se espalha no ar e no éter renovando a vida. As flautas dos aborígines australianos, conhecidas como digiridus, quando soam parecem acordar as vísceras da Terra. Os xamãs australianos utilizam esse som mágico para equilibrar os chakras e promover saúde. Os monges tibetanos e os índios do Xingu também tocam flautas longas, consideradas sagradas, cujo som vibra nas profundezas do útero ígneo da Mãe-Terra.

Na mitologia grega, o som da flauta de Pã irmanava e despertava o amor em todos os seres da natureza. Os chineses usavam fragmentos finos de jade que chamavam de “pedras cantoras” para produzir sons específicos que promoviam curas por vibração quando eram tocadas pela mão do paciente. Um desses tons curadores denomina-se kung, que significa “grande natureza”, e na escala musical ocidental corresponde á nota fá ou fá sustenido. Dentre os árabes sufis, o som supremo é hu, que representa a essência de Deus Pai Allah, presente no homem e na mulher e em tudo que existe.

OS TIBETANOS CONSIDERAM SAGRADOS O FÁ SUSTENIDO, o lá e o sol. Os hindus têm outra escala musical cujas notas são sagradas emissões do OM, AUM, que é considerado o som dos sons, o Pranava, o Som Primordial, de onde nascem todos os demais sons. No hinduísmo, a nossa anatomia sutil é constituída por centros de força denominados chakras, e cada um desses centros vibra em determinado tom e cor. Esses centros estão distribuídos ao longo da coluna vertebral e visualizar a cor do chakra e cantar o som que lhe corresponde harmoniza e cura o corpo e a mente.

Os indígenas costumam usar as vogais para alinhar os centros energéticos que compõem o corpo sinestésico, que é denominação científica ocidental do sistema de chakras. Na Cabala mística, esses centros são ativados e alinhados pela recitação dos nomes de Deus. Nos Vedas, escrituras sagradas hindus, os versos obedecem à métrica e ritmo considerados sagrados, e quando cantados emitem diferentes vibrações e ressonâncias, algumas delas de cura física e espiritual, e outras capazes de provocar manifestações físicas, desde formas geométricas até materializações de objetos, ou acionar os elementos da natureza.

Os antigos essênios, cujo nome deriva de asaya, que significa “curador, médico”, eram iniciados nos sons e nomes sagrados judaicos, nos segredos das energias da natureza e vibrações das correntes magnéticas, elétricas e telúricas. Os caldeus usavam os Tumim, esculturas vazadas que serviam de oráculo sonoro. As mensagens do universo chegavam com a voz do vento atravessando as cavidades das esculturas, e então o sacerdote traduzia as nuanças dos sons e os seus significados.

Os judeus e cristãos conferem à palavra “Amém” o poder de manifestar, na matéria, o poder de Deus. No Egito antigo, a palavra amen ou amou tinha o mesmo poder. Segundo alguns papiros, durante a construção das pirâmides, um coral de vozes humanas, acompanhado de instrumentos, fazia da música um tipo de alimento energético para o corpo e bálsamo reconfortante para a alma dos trabalhadores.

Na Grécia, Orfeu, mestre, músico, poeta e hierofante dos Mistérios de Dioniso, era um intérprete dos deuses e curava as pessoas cantando e tocando sua lira de ouro, produzindo sons em sintonia vibracional com a música das esferas. O sábio grego Pitágoras criou as oitavas da atual escala musical para comprovar a relação do som e os princípios matemáticos e geométricos do universo. Aristóteles ofereceu à humanidade a teoria da propagação do som pelo ar.



NA ANTIGUIDADE, A EDUCAÇÃO DEDICAVA MUITA ATENÇÃO AO CONHECIMENTO MUSICAL e à iniciação nos sons sagrados. Nós sabemos que tudo na vida é ressonância e que educação é basicamente ressonância. Atualmente, algumas propostas pedagógicas retomam o caminho da música e das artes como a maneira de reencontrar a Verdade, a Beleza e o Bem. A integração do conhecimento e a promoção de sabedoria, por ressonância, trazem Deus de volta ao mundo. Para demonstrar o princípio da ressonância basta um diapasão e um piano. Qualquer um pode experimentar; basta tocar o dó maior central no diapasão e levantar a tampa do piano, depois tocar com suavidade as cordas e perceberá o dó central vibrando.

Os sistemas que constituem nosso organismo, reagem da mesma maneira; as diversas freqüências sonoras atuam em nosso corpo e alteram a nossa bioenergia. Isso acontece pela ressonância vibratória. Reagimos ao som e à sua vibração de maneira positiva ou negativa. Consonância ou dissonância. Um grupo de pessoas se afina por meio de ressonância harmoniosa e se repele por dissonância. Objetivos comuns e freqüência equilibrada de pensamentos e timbre de voz, constituem o diapasão da emissão de energia bioelétrica e eletrônica, que aproxima ou distancia as pessoas.

Porém, quando utilizada adequadamente, a dissonância é importante para a superação de problemas físicos e emocionais, levando os órgãos dos diversos sistemas do organismo a reencontrar sua higidez e funcionar normalmente. No acorde dissonante, existe um espaço vazio, uma transição, que é onde transformações podem acontecer. Nosso corpo físico, assim como o universo, é o som que criou forma e, como ele, vibra, ressoa e se expande.

Denomina-se diapasão a altura do som determinada pela velocidade de sua vibração. Descobrir o próprio diapasão e o tom, timbre, ritmo e melodia da nossa fala são fatores muito importantes para o autoconhecimento. Nossa voz revela quem somos; quando falamos, criamos som, ritmo, melodia e harmonia ou desarmonia onde antes só havia silêncio. É preciso ter consciência do poder das palavras e da intervenção energética causada por elas. Além do mais, as palavras são dotadas de poderes energéticos criadores e podem nos ajudar a estabelecer um diálogo entre mentes e almas para transformar e ou recriar realidades.



FALAR É UM PARTO SONORO QUE PERMITE A MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO e do sentimento pela emissão de sons organizados, modulados e movidos pela vontade, direcionados pela intenção. A intenção é a alma da vontade, e concede brilho e força construtiva ou destrutiva às palavras.

As consoantes e vogais agem de maneira complementar na formação das palavras. As vogais vibram e criam campos energéticos pelas emoções, e as exprimem. Isso é fácil de perceber, por exemplo: quando alguém se machuca e diz: “ai, ou ui”. Quando algo nos causa admiração dizemos: “oh!”, “ah!”, etc.

As consoantes, por sua vez, agem no intelecto, concretizam idéias. Quando unimos consoantes e vogais, ativamos células germinativas das cordas vocais e dinamizamos o poder criador da palavra.

Nosso corpo musical é formado por vibrações que poderíamos denominar canto e dança das células. A escala musical é uma escada sonora e as oitavas são os degraus para ascender a dimensões mais elevadas de consciência. As mesmas notas, quando tocadas uma oitava acima, ficam muito mais intensas e definidas.

Os sons vocálicos harmonizam e curam. Mesmo os sons dissonantes ou desafinados, que inicialmente agridem nossos ouvidos, vibram em busca de um sistema de organização sonora que gere uma nova harmonia, um novo padrão. O som tem poder harmonizados ou desarmonizados, e as palavras constroem ou destroem, por isso é tão importante saber sobre o poder da palavra. É preciso aprender a falar consciente da intenção que orienta o que estamos dizendo e saber que, muitas vezes, uma palavra pode ferir alguém mortalmente ou abrir feridas de difícil cicatrização, mas também pode ser um carinhoso meio de aquecer o coração com ternura, iluminar a inteligência e inspirar bons pensamentos e idéias claras, que abrem possibilidades para o bem e para a harmonia entre as criaturas.

A palavra certa, dita da forma certa, na hora certa, para a pessoa certa, prepara e fertiliza o terreno para a semeadura de autotransformações. A palavra traduz as variadas expressões da inteligência humana e, quando ouvimos a voz do coração antes de falar, construímos pontes e derrubamos muralhas entre pessoas e culturas, aproximamos as diferenças, reconhecendo o que temos em comum, e assim enriquecemos nossos relacionamentos interpessoais.



SEGUNDO ALGUMAS CORRENTES INICIÁTICAS DO CRISTIANISMO, a “porta estreita” à qual Jesus se referiu é a garganta, o portal estreito que conecta o intelecto ao coração; e o corpo é a base e a estrutura do templo. O intelecto seria o observador e avaliador de tudo que é exterior no e ao templo, e o coração o altar-mor, o santo santorum no interior do templo, o lugar onde Deus se instala.

Cânticos, orações, mantras, músicas e palavras sagradas são formas de dialogar com a alma e unificar o corpo, a mente e o espírito, e atingir plenitude. Os sons sagrados permitem o alinhamento da consciência com o padrão do Som das Esferas, e criam novas conexões com aspectos mais sutis da inteligência pela sintonia com fontes de criatividade dos sistemas sonoros organizacionais da Fonte Primordial.

Existe diferença entre falar o nome sagrado e cantar o mantra, entre cantar simplesmente, sem concentrar sentimento e intenção, e cantar focando intenção e sentimento. A intenção e o sentimento direcionam a energia porque determinam o foco e criam no corpo, na mente e na alma uma postura de alinhamento receptivo. A razão, então, é fecundada por revelações.

Antes de assumirmos a forma física, o universo nos acalenta e alimenta com os sons da eternidade, e desde que somos concebidos, os sons que ouvimos no ventre de nossa mãe – o ritmo do coração dela em consonância com o nosso – compõem a melodia que harmoniza e integra criador e criatura. Toda vida se manifesta basicamente como som. No ventre materno, ouvimos o primeiro mantra e percebemos nuanças sonoras que nos sintonizam com o mundo interior e exterior.

No Mahabaratha, uma escritura sagrada do hinduísmo, está registrada numa passagem a interação sonora entre Arjuna e seu filho Abimaniu, quando este ainda era um feto em formação. Narra a escritura que o príncipe Arjuna explica uma tática de guerra diante de sua esposa grávida; e seu filho, muitos anos depois, declara saber executar a estratégia que somente seu pai conhecia. Quando lhe perguntaram como isso foi possível, ele afirmou ter ouvido diretamente do pai enquanto ainda estava no ventre da mãe.

Não faz muito tempo, a ciência moderna descobriu que o feto interage com a mãe e com o meio exterior, e o quanto é importante a escolha dos lugares que a gestante freqüenta e do que ela ouve devido à capacidade do feto de registrar informações, ensinamentos e emoções. É notório que um recém-nascido se acalma ouvindo a voz da mãe e como se entrega inteiramente quando sua mãe o carrega no colo e aproxima sua cabeça do seio dela. O som e o ritmo íntimo e acalentador dos batimentos cardíacos da mãe tranqüilizam o bebê e lhe conferem segurança, comunhão e paz. A criança reconhece o som e a consonância rítmica como maneira de dialogar amorosamente com a vida.

O som sagrado nos conduz naturalmente para a harmonia e nos induz a experiências místicas. Como o som está em tudo, no vazio e no não-vazio, ele aproxima as diferenças e evidencia o que temos como afinidade. Em todas as tradições, os sons sagrados estão ligados à experiência mística transformadora. A universalidade do poder do som e dos conteúdos das experiências místicas profundas demonstra que toda experiência espiritual transformadora resulta da comunhão com a totalidade e é concebida pela união do homem com Deus.



Nota: Marilu Martinelli é jornalista, escritora, educadora, professora de mitologia, especialista em Desenvolvimento Humano, Consultora Educacional e Empresarial para Formação de Lideranças em Valores Humanos. E-mail: gayatriml@hotmail.com

(Extraído da revista Sexto Sentido 54, páginas 36-41)

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