THELEMA - UMA RELIGIÃO DA NOVA ERA
Com o pensamento voltado para a liberdade do indivíduo, a lei de Thelema completo 100 anos e conquista cada vez mais adeptos, ainda que muitas vezes não seguindo a idéia originalmente elaborada por Aleister Crowley.
Carlos Raposo
Carlos Raposo
Em escala mundial, estamos vivendo um momento de significativa importância para muitos dos estudantes das assim chamadas ciências ocultas. No período entre os dias 21 de março e 10 de abril de 2004 – a parti das festividades do equinócio de primavera (ou outono, no hemisfério sul) – milhares de fiéis em todo mundo celebrarão o centenário de inauguração de sua religião, vinda ao mundo com a promessa de ser a aclamada religião da Nova era: é o centenário da Lei de Thelema.
Nos dia 8, 9 e 10 de abril de 1904, Aleister Crowley recebia o Líber Al vel Legis (comumente chamado de Livro da lei), documento mestre da então recém-nascida Lei de Thelema.
O Livro da Lei é a pedra fundamental da religião thelêmica, ou a religião do Novo Éon de Hórus, como os thelêmitas preferem chamar a Era de Aquário. Aleister Crowley, então, como Profeta do Novo Éon, definitivamente marca sua presença no cenário ocultista mundial.
Um dos exemplos mais desconcertantes na história do ocultismo de todos os tempos, Aleister Crowley (Edward Alexander Crowley, 1875-1947) legou à humanidade uma vastíssima obra, cuja principal virtude é, de acordo com as palavras de seus seguidores, libertar o ser humano da escravidão imposta pelo secular dogmatismo das religiões de massa.
Por volta de 1896, Crowley iniciou a leitura de alguns livros sobre magia e misticismo. Algo começava a tomar forma dentro de seu irrequieto ser; porém, foi à leitura de Nuvem sobre o Santuário, do místico Karl Von Eckhartshusen, que fez com que ele decidisse abandonar os estudos em Cambridge, bem antes de sua graduação, para dedicar a vida ao estudo do Ocultismo e da Magia. Assim, ele se empenhou com afinco no sentido de encontrar os Mestres Secretos e a Grande Fraternidade Branca, mencionados no livro de Eckhartshausen.
Através de dois amigos, Julian Baker e George Cecil Jones, Crowley foi apresentado a Samuel Liddell “MacGregor” Mathers, um dos líderes da Ordem Hermética da Aurora Dourada (The Hermetic Order of the Golden Dawn), uma das mais influentes ordens iniciáticas do final do século 19.
A Golden Dawn – fundada em 1887 pelo próprio Mathers, junto com os maçons William Winn Westcott e Willian Robert Woodman – proporcionaria a Crowley sua primeira iniciação e o contato ansiava.
O ano de 1904 revelou a Crowley o mistério que o acompanhou até seu último momento: a Lei de Thelema. Com sua esposa Rose Kelly, Crowley viajou pelo Egito e, segundo o seu relato, quando de sua estadia no Cairo, após uma série de rituais e invocações ao deus Thoth, iniciadas durante o equinócio de primavera daquele ano, um de ser preter-humano, identificando-se como Aiwass, lhe ditou, nos dias 8, 9 e 10 de abril, o Liber Al vel Legis, o Livro da Lei. Nascia a religião de Thelema.
Líber Al vel Legis, de acordo com os thelemitas, proclama o fim da Era, ou Éon, num evento de passagem denominada por eles como o Equinócio dos Deuses. O velho Éon era marcado pelo sofrimento, pela necessidade de intermediação entre Deus e o homem.Em seu lugar, começava a época do deus de alegria, em que o homem teria a liberdade de realização de sua própria vontade. A epígrafe “Faze o que queres há de ser o todo da Lei”, contida em Líber Al e utilizada nos escritos de natureza thelêmica, sintetiza a própria regra de conduta a ser tomada como tônica do Éon então nascido.
THELEMA É UMA PALAVRA GREGA QUE SIGNIFICA “VONTADE”. A religião thelêmica pode ser entendida como aquela que fará com que seu seguidor identifique, conheça e, então, passe a seguir a sua própria vontade pessoal. Esta, de acordo com Crowley, deve estar obrigatoriamente em harmonia com a Vontade que tudo rege. Somente assim, essas duas vontades, passam a ser uma única vontade, chamada de Vontade Verdadeira, a orientar a vida do Iniciado.
Algumas máximas, extraídas de Líber Al, servem como guias para os fiéis da religião criada por Crowley. Entre elas, as mais conhecidas são: Fazer o que queres há de ser o todo da Lei”; “Amor é a lei, amor sob vontade”; “a palavra de pecado é restrição”; e a bem poeticamente mística “todo homem e toda mulher é uma estrela”.
Thelema (ou sua vontade), para ter o devido equilíbrio em força e beleza, deve ser usada em igual proporção à Ágape, palavra grega para “amor”. Daí a compreensão do axioma “Amor é a lei, amor sob vontade” ser de vital importância para o exercício da religião thelêmica. A demonstração desse mistério pode ser apresentada através do uso da gematria, técnica em que valores são atribuídos às palavras. Desse modo, chega-se a uma fórmula bem simples, uma expressão matemática de busca de identidade, ou da Unidade, o número 1. A palavra “Vontade”, Thelema, segundo a gematria normalmente adotada, vale 93. A palavra “Amor”, Ágape, também valerá 93. Assim, dizem os thelemitas, “amor sob vontade” pode ser representado por “93/93”. E essa fração é igual a 1, a Unidade. O ser humano, dotado de iguais medidas de Amor e de Vontade, teria assim a capacidade de realização espiritual máxima, sendo ele mesmo a expressão viva da Unidade primordial.
Ágape também é compreensão e entendimento. Desprezar esta chave é causar desequilíbrio entre os pratos da balança. Nesse caso, teríamos vontade fraca e entendimento nulo. A resultante dessa insidiosa ação não poderia ser outra. Quando vontade e entendimento, princípios básicos que constituem o homem, operam sem harmonia, o espírito cai enfermo. O estudo e a prática da Lei de Thelema, ressaltam os thelemitas, intentam fazer com que o conjunto Vontade e Entendimento funcione devidamente, levando o adepto à sua realização plena, também nomeada por eles de a Grande Obra.
SEGUNDO CROWLEY E SUA RELIGIÃO, “A PALAVRA DE PECADO É RESTRIÇÃO”. Crowley é bem claro sobre o que significa “restrição”. Ele diz: “qualquer coisa que prenda a vontade, que a impeça, ou que a desvie, é Pecado”. Sendo, pois, a restrição da vontade pessoal o principal obstáculo ao desenvolvimento individual, o esforço do fiel da religião thelêmica, o thelemita, deve ser orientado no sentido de identificar dois pontos básicos: a Vontade Verdadeira e os elementos que impedem a sua manifestação. Eliminando o segundo, aquele faria o homem brilhar como estrela: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”, Arremata Crowley.
Thelema trás ainda um alentado apelo liberal, que a mente menos perspicaz – em espécie aquela presa ou afetada por dogmas religiosos relacionados à sexualidade – pode entender como promíscuo ou libertino. Ainda sobre o pecado ser identificado com restrição, por exemplo, Crowley completa: “O instinto sexual é uma das mais profundamente enraizadas expressões da Vontade; e não deve ser restringido”. Ele é ainda mais enfático e claro quando diz que “o homem tem o direito de amar como quiser, quando, como, onde e com quem quiser”. Quando recriminado em relação à suposta imoralidade de seus atos, ele simplesmente diz que “quando você bebe ou dança e desfruta de alegrias, você não está sendo ‘imoral’ nem ‘prejudicando sua alma imortal’, você está sendo inteiramente de acordo com os preceitos de nossa Religião”.
Muito além de toda especulação feita a respeito da doutrina religiosa de Aleister Ceowley, bem como a respeito de seu incomum modo de vida, o universo thelêmico ainda guardará uma infinita gama de significados, todos esperando para serem desvendados. Ao centro de todos esses mistérios sempre estará o ser humano. A prática thelêmica visa mostra ao seu Adepto exatamente isto, uma realidade iniciática, por muitos considerada demais dolorosa: o verdadeiro Iniciado está só, entregue a si mesmo e a mais ninguém, sendo ele o único responsável por seu destino.
Uma das formas mais belas e significativas encontradas por Crowley para demonstrar esse mistério estará presente em dramatização ritualística. Descrevendo-a, após a entrada do Postulante no tempo, o Oficiante principal que conduz o rito lhe pergunta em tom solene: “Em todos os casos de dificuldade e perigo, em quem tu depositas atua confiança?”. Por sua livre iniciativa e vontade, o Candidato deverá responde confiante: “Em mim mesmo”. Desse modo, o Oficiante dará continuidade ao Rito. Entretanto, qualquer outra resposta vacilante indicará que aquele Postulante ainda não está preparado para a comunicação dos mistérios thelêmicos ali celebrados, devendo ser o candidato imediatamente retirado do tempo.
A breve descrição acima, que compõe o Ritual de Iniciação ao Grau I da Ordem do Tempo do Oriente, resume de modo magistral o espírito de liberdade dessa nova religião. É a essa busca por irrestrita Liberdade, munidos pela Tradição, que os Adeptos e Seguidores da Estrela e da Serpente, os Estudantes de Thelema, dedicam sua Obra.
TALVEZ DEVIDO A SEU FORTE APELO LIBERTÁRIO, MUITOS DOS ENTUSIÁSTICOS seguidores da Lei de Thelema sejam levados a tomar sua religião como totalmente revolucionária e completamente nova. No entanto, se por um lado à religião thelêmica é o resultado da busca individual de um Iniciado, se ela é a demanda por irrestrita liberdade, por outro, ela possui como elementos fundamentais alguns princípios sacados livremente por Crowley das mais variadas fontes, com as quais ele esteve em contato.
Apenas citando alguns nomes como exemplo, encontramos em Santo Agostinho (que proclamou, ainda na aurora do cristianismo, “ama e faze o que quiser”), uma de suas principais. Em François Rabelais (especificamente em Gargântua e Pantagruel), Crowley buscou o conceito de sua famosa “Abadia de Thelema”. Nos Provérbios do Inverno, do igualmente desconcertante Willian Blake, que dizia “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, Crowley encontraria inspiração para recomendar que seus discípulos “excedessem”. Do filósofo Nitzsche – considerado por Crowley uma espécie de “avatar de mercúrio” – seria absorvida a fonte idéia anticristã da completa negação de Deus. “Não há Deus”, diz enfaticamente o filósofo em seu Anticristo, ao que Crowley completa, inspirado: “Não há deus senão o homem”.
Apesar de, em muitos aspectos, a religião thelêmica não ser simpática ao cristianismo (“eu bico os olhos de Jesus enquanto ele está dependurado na cruz”, thelemitas), paradoxalmente, foi exatamente a Bíblia cristã uma das principais fontes para Crowley mostra sua religião. Por exemplo, o conceito de vontade, de acordo com a religião thelêmica, está muito próxima da máxima cristã “seja feito a tua vontade” (Mateus, 6:10).
Outros conceitos fundamentais para o entendimento da religião thelêmica estão presente nas fantásticas imagens da Besta 666 e de sua consorte, a voluptuosa deusa Babalon. “A Grande Besta” (ver em Apocalipse, 13:18) foi talvez o principal nome mágico de Crowley e a descrição de sua divindade Babalon, versão “corrigida” de Crowley para a palavra inglesa Babylon, a Grande Prostituta que cavalga a Besta de sete cabeças, foi interiramente sacada da Bíblia (ver Apocalipse, 17:3-5).
OUTRO PAR DE DEUSES-CHAVE DENTRO DO PANTEÃO DE DIVINDADE CULTUADAS pelos thelemitas, é o casal estelar Hadir e Nuit, representações divinizadas do ponto e do círculo. Hadit, de acordo com os livros Santos thelêmicos, é um deus que se apresenta dizendo: “Eu estou só. Não há deus onde eu sou”. A origem desta breve fala está intrinsecamente relacionada a Isaías (45:5): “sou eu que sou o Senhor, não existe outro senão eu”. Nuit, por sua vez – que aparece em Liber Al como a Rainha do Céu, a quem se deve queimar incenso – segue o modelo da divindade estelar cultuada, assim como a inspirada descrição bíblica apresentada em Jeremias (44:15-19).
Não devemos supor, entretanto, que os textos bíblicos que tão fortemente marcaram a vida de Aleister Crowley formem a única fonte de seu culto thelêmico. Há também em seu sistema de realização espiritual muito de yoga, de magia e de misticismo. Do Oriente, Crowley sorveu dos escritos de Vivekanada e Patanjali; enquanto que, do Ocidente, todo o sistema de magia, assim como lhe ensinado pela GD original, foi aprovado para que ele montasse o seu próprio sistema iniciático, e também sua magick.
Em relação ao misticismo, muito foi revivido por Crowley a partir de ensinamentos que remontam a época das seitas gnósticas, em espécie aquelas relacionadas a Basilides e Valentino, os quais foram considerados pelo Profeta Crowley como autênticos Santos de sua Igreja Católica Gnólica. Tão marcante é a influência destes na mente de Crowley que um dos principais ícones da crença thelêmica, Baphomet, foi concebido por ele a partir da suposta compreensão mística que lhe davam esses gnósticos (ver meu artigo Os Mistérios de Baphomet, em Sexto Sentido 45).
O fértil panteão de deuses egípcios foi outras das fontes de onde Crowley mais buscou estereótipos que comporiam os seus próprios deuses. Além da já citada Nuit, uma variação da deusa Nu, Crowley aproveitaria conceitos como de Osíris, Hórus, ISIS (poeticamente entendida por Crowley como um acrótico de Infinite Space, and the Infinite Stars), e tantos outros deuses mais, para formular o panteão de sua religião. E há ainda mais longínquas, relacionado, por exemplo, Aiwass, a entidade que ditou o Livro da Lei para Crowley, a deuses cultuados na antiqüíssima Suméria.
A religião thelêmica, enfim, talvez seja o fantástico produto de uma mentalidade incrivelmente sincrética, extraordinariamente ampla, alucinada e diversificada, que jamais se permitiu limitar por quaisquer fronteiras impostas, seja por uma cultura seja por uma sociedade. Esse é o principal exemplo e o legado da Besta, Aleister Crowley.
Certamente, o legado da Besta surpreendeu aqueles que esperavam e até mesmo ansiavam seu esquecimento. Esses nunca poderiam imaginar que a qualidade de admiradores e discípulos da tradição revivida por Crowley, o Culto da Besta, ou o Culto das Sombras, aumentasse de forma “assustadora, chegando mesmo a comprometer as morais, nas quais nossa sociedade está erigida”. Talvez esses tenham esquecido que essas mesmas bases morais, nas quais foi estabelecido aquilo que hoje denominamos sociedade, sejam as únicas reais responsáveis pela obtusa condição em que se encontram centenas de milhões de homens e mulheres, massacrados por não qualificáveis condições de vida, seguro retorno do bimilenar investimento sócio-religioso e econômico, que é a miséria.
ATUALMENTE, A LEI DE THELEMA CANTA COM MILHARES DE SEGUIDORES em todo mundo. A ampla maioria deles prefere não estar associado diretamente a qualquer grupo institucionalizada pretenda aparecer publicamente como representante da Lei de Thelema. Quando muito, esses seguidores se reúnem em pequenos grupos, não oficiais, pois somente neles há a possibilidade do livre debate e estudo das premissas thelêmicas, de acordo com os textos de seu profeta, Aleister Crowley.
Contudo, até mesmo numa religião onde se pressupõe que a liberdade irrestrita seja a grande motivação, novamente existe a ameaça de se fazer valer o ditado homo homini lupus (o homem é o lobo do homem). Assim, embora atualmente contado como um inexpressivo séqüito, existem algumas poucas seitas thelêmicas institucionalizadas que se digladiam ferrenhamente pela posse das rentáveis obras de Aleister Crowley. O objetivo de tudo é – seguindo o conhecido modelo empregado pela Igreja Católica quando de seu famoso Concílio de Nicea – transformar-se na única representante oficial da religião da Nova Era, condenando qualquer outra opção marginalidade. Essas seitas, infelizmente, por mais novas que sejam, já têm suas histórias marcadas pelo dogma, dogmatismo e pelo fanatismo, impingindo perseguições a todo e qualquer estudante sincero que não se submeta às suas rédeas.
No Brasil, apenas a partir da década de 1970 é que a Lei de Thelema ganharia certa popularidade, através da obra do genial Raul Seixas. Alguns de seus sucessos, muitos deles compostos em parceria com Paulo Coelho, tiveram como origem os textos do mago Aleister Crowley. Atualmente, graças às facilidades promovidas pela Internet, cresce no Brasil o número de estudantes não sectários (aquele que não pertencem a ordens sectárias) da Lei de Thelema.
A Lei de Thelema está completando 100 anos. Para muitos, Aleister Crowley representa o papel de profeta, vate e apóstolo. Sua grande aspiração reflete a aspiração de todo ser humano: o anseio do homem por liberdade. Seu trabalho pode ser compreendido não apenas como o resultado dos caprichos de uma controvertida personalidade, mas principalmente da necessidade humana de tomada de consciência necessidade de vontade, necessidade de entendimento. Esse era todo o anseio de Crowley e também o anseio de qualquer ser humano. Isso é liberdade, liberdade apenas para a realização da Vontade Verdadeira de cada um de nós, nada mais.
Thelema pode ser livremente resumida como o eterno anseio do homem insatisfeito querendo revolucionar. Toda essa necessidade de dar um novo sentido aos estudos, de fazer do velho algo de fato novo, agora me faz relembrar das últimas palavras a mim dirigidas pelo meu velho mestre, que, apesar de sua notável erudição, brilhantismo, cortesia e sabedoria, sempre insistiu em permanecer desfrutando de um completo saudável anonimato. Momentos antes de partir para o Oriente Eterno, ele me falou, feliz e reflexivo, que toda sua luta pessoal por revolucionar a sena mística certamente tinha feito de sua vida um exemplo para nós, sedentos aprendizes. Contudo, se eu quisesse ainda usufruir uma gota de sabedoria daquele mestre, que escutasse uma inspiração canção. E ele cantarolou, meio que risonho – saudosa Elis Regina – “nosso ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”.
Carlos Raposo é maçom, pesquisador da história de ordens secretas, filosofia oculta e ciências herméticas, e também responsável pelo site Arte Magicka (www.artemagicka.com). E-mail para contato; reaposo@artemagicka.com
(Extraído da revista Sexto Sentido 50, páginas 34-40)
Nos dia 8, 9 e 10 de abril de 1904, Aleister Crowley recebia o Líber Al vel Legis (comumente chamado de Livro da lei), documento mestre da então recém-nascida Lei de Thelema.
O Livro da Lei é a pedra fundamental da religião thelêmica, ou a religião do Novo Éon de Hórus, como os thelêmitas preferem chamar a Era de Aquário. Aleister Crowley, então, como Profeta do Novo Éon, definitivamente marca sua presença no cenário ocultista mundial.
Um dos exemplos mais desconcertantes na história do ocultismo de todos os tempos, Aleister Crowley (Edward Alexander Crowley, 1875-1947) legou à humanidade uma vastíssima obra, cuja principal virtude é, de acordo com as palavras de seus seguidores, libertar o ser humano da escravidão imposta pelo secular dogmatismo das religiões de massa.
Por volta de 1896, Crowley iniciou a leitura de alguns livros sobre magia e misticismo. Algo começava a tomar forma dentro de seu irrequieto ser; porém, foi à leitura de Nuvem sobre o Santuário, do místico Karl Von Eckhartshusen, que fez com que ele decidisse abandonar os estudos em Cambridge, bem antes de sua graduação, para dedicar a vida ao estudo do Ocultismo e da Magia. Assim, ele se empenhou com afinco no sentido de encontrar os Mestres Secretos e a Grande Fraternidade Branca, mencionados no livro de Eckhartshausen.
Através de dois amigos, Julian Baker e George Cecil Jones, Crowley foi apresentado a Samuel Liddell “MacGregor” Mathers, um dos líderes da Ordem Hermética da Aurora Dourada (The Hermetic Order of the Golden Dawn), uma das mais influentes ordens iniciáticas do final do século 19.
A Golden Dawn – fundada em 1887 pelo próprio Mathers, junto com os maçons William Winn Westcott e Willian Robert Woodman – proporcionaria a Crowley sua primeira iniciação e o contato ansiava.
O ano de 1904 revelou a Crowley o mistério que o acompanhou até seu último momento: a Lei de Thelema. Com sua esposa Rose Kelly, Crowley viajou pelo Egito e, segundo o seu relato, quando de sua estadia no Cairo, após uma série de rituais e invocações ao deus Thoth, iniciadas durante o equinócio de primavera daquele ano, um de ser preter-humano, identificando-se como Aiwass, lhe ditou, nos dias 8, 9 e 10 de abril, o Liber Al vel Legis, o Livro da Lei. Nascia a religião de Thelema.
Líber Al vel Legis, de acordo com os thelemitas, proclama o fim da Era, ou Éon, num evento de passagem denominada por eles como o Equinócio dos Deuses. O velho Éon era marcado pelo sofrimento, pela necessidade de intermediação entre Deus e o homem.Em seu lugar, começava a época do deus de alegria, em que o homem teria a liberdade de realização de sua própria vontade. A epígrafe “Faze o que queres há de ser o todo da Lei”, contida em Líber Al e utilizada nos escritos de natureza thelêmica, sintetiza a própria regra de conduta a ser tomada como tônica do Éon então nascido.
THELEMA É UMA PALAVRA GREGA QUE SIGNIFICA “VONTADE”. A religião thelêmica pode ser entendida como aquela que fará com que seu seguidor identifique, conheça e, então, passe a seguir a sua própria vontade pessoal. Esta, de acordo com Crowley, deve estar obrigatoriamente em harmonia com a Vontade que tudo rege. Somente assim, essas duas vontades, passam a ser uma única vontade, chamada de Vontade Verdadeira, a orientar a vida do Iniciado.
Algumas máximas, extraídas de Líber Al, servem como guias para os fiéis da religião criada por Crowley. Entre elas, as mais conhecidas são: Fazer o que queres há de ser o todo da Lei”; “Amor é a lei, amor sob vontade”; “a palavra de pecado é restrição”; e a bem poeticamente mística “todo homem e toda mulher é uma estrela”.
Thelema (ou sua vontade), para ter o devido equilíbrio em força e beleza, deve ser usada em igual proporção à Ágape, palavra grega para “amor”. Daí a compreensão do axioma “Amor é a lei, amor sob vontade” ser de vital importância para o exercício da religião thelêmica. A demonstração desse mistério pode ser apresentada através do uso da gematria, técnica em que valores são atribuídos às palavras. Desse modo, chega-se a uma fórmula bem simples, uma expressão matemática de busca de identidade, ou da Unidade, o número 1. A palavra “Vontade”, Thelema, segundo a gematria normalmente adotada, vale 93. A palavra “Amor”, Ágape, também valerá 93. Assim, dizem os thelemitas, “amor sob vontade” pode ser representado por “93/93”. E essa fração é igual a 1, a Unidade. O ser humano, dotado de iguais medidas de Amor e de Vontade, teria assim a capacidade de realização espiritual máxima, sendo ele mesmo a expressão viva da Unidade primordial.
Ágape também é compreensão e entendimento. Desprezar esta chave é causar desequilíbrio entre os pratos da balança. Nesse caso, teríamos vontade fraca e entendimento nulo. A resultante dessa insidiosa ação não poderia ser outra. Quando vontade e entendimento, princípios básicos que constituem o homem, operam sem harmonia, o espírito cai enfermo. O estudo e a prática da Lei de Thelema, ressaltam os thelemitas, intentam fazer com que o conjunto Vontade e Entendimento funcione devidamente, levando o adepto à sua realização plena, também nomeada por eles de a Grande Obra.
SEGUNDO CROWLEY E SUA RELIGIÃO, “A PALAVRA DE PECADO É RESTRIÇÃO”. Crowley é bem claro sobre o que significa “restrição”. Ele diz: “qualquer coisa que prenda a vontade, que a impeça, ou que a desvie, é Pecado”. Sendo, pois, a restrição da vontade pessoal o principal obstáculo ao desenvolvimento individual, o esforço do fiel da religião thelêmica, o thelemita, deve ser orientado no sentido de identificar dois pontos básicos: a Vontade Verdadeira e os elementos que impedem a sua manifestação. Eliminando o segundo, aquele faria o homem brilhar como estrela: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”, Arremata Crowley.
Thelema trás ainda um alentado apelo liberal, que a mente menos perspicaz – em espécie aquela presa ou afetada por dogmas religiosos relacionados à sexualidade – pode entender como promíscuo ou libertino. Ainda sobre o pecado ser identificado com restrição, por exemplo, Crowley completa: “O instinto sexual é uma das mais profundamente enraizadas expressões da Vontade; e não deve ser restringido”. Ele é ainda mais enfático e claro quando diz que “o homem tem o direito de amar como quiser, quando, como, onde e com quem quiser”. Quando recriminado em relação à suposta imoralidade de seus atos, ele simplesmente diz que “quando você bebe ou dança e desfruta de alegrias, você não está sendo ‘imoral’ nem ‘prejudicando sua alma imortal’, você está sendo inteiramente de acordo com os preceitos de nossa Religião”.
Muito além de toda especulação feita a respeito da doutrina religiosa de Aleister Ceowley, bem como a respeito de seu incomum modo de vida, o universo thelêmico ainda guardará uma infinita gama de significados, todos esperando para serem desvendados. Ao centro de todos esses mistérios sempre estará o ser humano. A prática thelêmica visa mostra ao seu Adepto exatamente isto, uma realidade iniciática, por muitos considerada demais dolorosa: o verdadeiro Iniciado está só, entregue a si mesmo e a mais ninguém, sendo ele o único responsável por seu destino.
Uma das formas mais belas e significativas encontradas por Crowley para demonstrar esse mistério estará presente em dramatização ritualística. Descrevendo-a, após a entrada do Postulante no tempo, o Oficiante principal que conduz o rito lhe pergunta em tom solene: “Em todos os casos de dificuldade e perigo, em quem tu depositas atua confiança?”. Por sua livre iniciativa e vontade, o Candidato deverá responde confiante: “Em mim mesmo”. Desse modo, o Oficiante dará continuidade ao Rito. Entretanto, qualquer outra resposta vacilante indicará que aquele Postulante ainda não está preparado para a comunicação dos mistérios thelêmicos ali celebrados, devendo ser o candidato imediatamente retirado do tempo.
A breve descrição acima, que compõe o Ritual de Iniciação ao Grau I da Ordem do Tempo do Oriente, resume de modo magistral o espírito de liberdade dessa nova religião. É a essa busca por irrestrita Liberdade, munidos pela Tradição, que os Adeptos e Seguidores da Estrela e da Serpente, os Estudantes de Thelema, dedicam sua Obra.
TALVEZ DEVIDO A SEU FORTE APELO LIBERTÁRIO, MUITOS DOS ENTUSIÁSTICOS seguidores da Lei de Thelema sejam levados a tomar sua religião como totalmente revolucionária e completamente nova. No entanto, se por um lado à religião thelêmica é o resultado da busca individual de um Iniciado, se ela é a demanda por irrestrita liberdade, por outro, ela possui como elementos fundamentais alguns princípios sacados livremente por Crowley das mais variadas fontes, com as quais ele esteve em contato.
Apenas citando alguns nomes como exemplo, encontramos em Santo Agostinho (que proclamou, ainda na aurora do cristianismo, “ama e faze o que quiser”), uma de suas principais. Em François Rabelais (especificamente em Gargântua e Pantagruel), Crowley buscou o conceito de sua famosa “Abadia de Thelema”. Nos Provérbios do Inverno, do igualmente desconcertante Willian Blake, que dizia “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, Crowley encontraria inspiração para recomendar que seus discípulos “excedessem”. Do filósofo Nitzsche – considerado por Crowley uma espécie de “avatar de mercúrio” – seria absorvida a fonte idéia anticristã da completa negação de Deus. “Não há Deus”, diz enfaticamente o filósofo em seu Anticristo, ao que Crowley completa, inspirado: “Não há deus senão o homem”.
Apesar de, em muitos aspectos, a religião thelêmica não ser simpática ao cristianismo (“eu bico os olhos de Jesus enquanto ele está dependurado na cruz”, thelemitas), paradoxalmente, foi exatamente a Bíblia cristã uma das principais fontes para Crowley mostra sua religião. Por exemplo, o conceito de vontade, de acordo com a religião thelêmica, está muito próxima da máxima cristã “seja feito a tua vontade” (Mateus, 6:10).
Outros conceitos fundamentais para o entendimento da religião thelêmica estão presente nas fantásticas imagens da Besta 666 e de sua consorte, a voluptuosa deusa Babalon. “A Grande Besta” (ver em Apocalipse, 13:18) foi talvez o principal nome mágico de Crowley e a descrição de sua divindade Babalon, versão “corrigida” de Crowley para a palavra inglesa Babylon, a Grande Prostituta que cavalga a Besta de sete cabeças, foi interiramente sacada da Bíblia (ver Apocalipse, 17:3-5).
OUTRO PAR DE DEUSES-CHAVE DENTRO DO PANTEÃO DE DIVINDADE CULTUADAS pelos thelemitas, é o casal estelar Hadir e Nuit, representações divinizadas do ponto e do círculo. Hadit, de acordo com os livros Santos thelêmicos, é um deus que se apresenta dizendo: “Eu estou só. Não há deus onde eu sou”. A origem desta breve fala está intrinsecamente relacionada a Isaías (45:5): “sou eu que sou o Senhor, não existe outro senão eu”. Nuit, por sua vez – que aparece em Liber Al como a Rainha do Céu, a quem se deve queimar incenso – segue o modelo da divindade estelar cultuada, assim como a inspirada descrição bíblica apresentada em Jeremias (44:15-19).
Não devemos supor, entretanto, que os textos bíblicos que tão fortemente marcaram a vida de Aleister Crowley formem a única fonte de seu culto thelêmico. Há também em seu sistema de realização espiritual muito de yoga, de magia e de misticismo. Do Oriente, Crowley sorveu dos escritos de Vivekanada e Patanjali; enquanto que, do Ocidente, todo o sistema de magia, assim como lhe ensinado pela GD original, foi aprovado para que ele montasse o seu próprio sistema iniciático, e também sua magick.
Em relação ao misticismo, muito foi revivido por Crowley a partir de ensinamentos que remontam a época das seitas gnósticas, em espécie aquelas relacionadas a Basilides e Valentino, os quais foram considerados pelo Profeta Crowley como autênticos Santos de sua Igreja Católica Gnólica. Tão marcante é a influência destes na mente de Crowley que um dos principais ícones da crença thelêmica, Baphomet, foi concebido por ele a partir da suposta compreensão mística que lhe davam esses gnósticos (ver meu artigo Os Mistérios de Baphomet, em Sexto Sentido 45).
O fértil panteão de deuses egípcios foi outras das fontes de onde Crowley mais buscou estereótipos que comporiam os seus próprios deuses. Além da já citada Nuit, uma variação da deusa Nu, Crowley aproveitaria conceitos como de Osíris, Hórus, ISIS (poeticamente entendida por Crowley como um acrótico de Infinite Space, and the Infinite Stars), e tantos outros deuses mais, para formular o panteão de sua religião. E há ainda mais longínquas, relacionado, por exemplo, Aiwass, a entidade que ditou o Livro da Lei para Crowley, a deuses cultuados na antiqüíssima Suméria.
A religião thelêmica, enfim, talvez seja o fantástico produto de uma mentalidade incrivelmente sincrética, extraordinariamente ampla, alucinada e diversificada, que jamais se permitiu limitar por quaisquer fronteiras impostas, seja por uma cultura seja por uma sociedade. Esse é o principal exemplo e o legado da Besta, Aleister Crowley.
Certamente, o legado da Besta surpreendeu aqueles que esperavam e até mesmo ansiavam seu esquecimento. Esses nunca poderiam imaginar que a qualidade de admiradores e discípulos da tradição revivida por Crowley, o Culto da Besta, ou o Culto das Sombras, aumentasse de forma “assustadora, chegando mesmo a comprometer as morais, nas quais nossa sociedade está erigida”. Talvez esses tenham esquecido que essas mesmas bases morais, nas quais foi estabelecido aquilo que hoje denominamos sociedade, sejam as únicas reais responsáveis pela obtusa condição em que se encontram centenas de milhões de homens e mulheres, massacrados por não qualificáveis condições de vida, seguro retorno do bimilenar investimento sócio-religioso e econômico, que é a miséria.
ATUALMENTE, A LEI DE THELEMA CANTA COM MILHARES DE SEGUIDORES em todo mundo. A ampla maioria deles prefere não estar associado diretamente a qualquer grupo institucionalizada pretenda aparecer publicamente como representante da Lei de Thelema. Quando muito, esses seguidores se reúnem em pequenos grupos, não oficiais, pois somente neles há a possibilidade do livre debate e estudo das premissas thelêmicas, de acordo com os textos de seu profeta, Aleister Crowley.
Contudo, até mesmo numa religião onde se pressupõe que a liberdade irrestrita seja a grande motivação, novamente existe a ameaça de se fazer valer o ditado homo homini lupus (o homem é o lobo do homem). Assim, embora atualmente contado como um inexpressivo séqüito, existem algumas poucas seitas thelêmicas institucionalizadas que se digladiam ferrenhamente pela posse das rentáveis obras de Aleister Crowley. O objetivo de tudo é – seguindo o conhecido modelo empregado pela Igreja Católica quando de seu famoso Concílio de Nicea – transformar-se na única representante oficial da religião da Nova Era, condenando qualquer outra opção marginalidade. Essas seitas, infelizmente, por mais novas que sejam, já têm suas histórias marcadas pelo dogma, dogmatismo e pelo fanatismo, impingindo perseguições a todo e qualquer estudante sincero que não se submeta às suas rédeas.
No Brasil, apenas a partir da década de 1970 é que a Lei de Thelema ganharia certa popularidade, através da obra do genial Raul Seixas. Alguns de seus sucessos, muitos deles compostos em parceria com Paulo Coelho, tiveram como origem os textos do mago Aleister Crowley. Atualmente, graças às facilidades promovidas pela Internet, cresce no Brasil o número de estudantes não sectários (aquele que não pertencem a ordens sectárias) da Lei de Thelema.
A Lei de Thelema está completando 100 anos. Para muitos, Aleister Crowley representa o papel de profeta, vate e apóstolo. Sua grande aspiração reflete a aspiração de todo ser humano: o anseio do homem por liberdade. Seu trabalho pode ser compreendido não apenas como o resultado dos caprichos de uma controvertida personalidade, mas principalmente da necessidade humana de tomada de consciência necessidade de vontade, necessidade de entendimento. Esse era todo o anseio de Crowley e também o anseio de qualquer ser humano. Isso é liberdade, liberdade apenas para a realização da Vontade Verdadeira de cada um de nós, nada mais.
Thelema pode ser livremente resumida como o eterno anseio do homem insatisfeito querendo revolucionar. Toda essa necessidade de dar um novo sentido aos estudos, de fazer do velho algo de fato novo, agora me faz relembrar das últimas palavras a mim dirigidas pelo meu velho mestre, que, apesar de sua notável erudição, brilhantismo, cortesia e sabedoria, sempre insistiu em permanecer desfrutando de um completo saudável anonimato. Momentos antes de partir para o Oriente Eterno, ele me falou, feliz e reflexivo, que toda sua luta pessoal por revolucionar a sena mística certamente tinha feito de sua vida um exemplo para nós, sedentos aprendizes. Contudo, se eu quisesse ainda usufruir uma gota de sabedoria daquele mestre, que escutasse uma inspiração canção. E ele cantarolou, meio que risonho – saudosa Elis Regina – “nosso ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”.
Carlos Raposo é maçom, pesquisador da história de ordens secretas, filosofia oculta e ciências herméticas, e também responsável pelo site Arte Magicka (www.artemagicka.com). E-mail para contato; reaposo@artemagicka.com
(Extraído da revista Sexto Sentido 50, páginas 34-40)