A OBSESSORA DO SILVA
No começo foi aquele anúncio mínimo no jornal, exatas onze palavras:
"Precisamos projetores, com prática, que desejem faturar dinheiro extra, fone tal". Como andava na maior dureza, liguei para lá, oferecendo-me, mesmo sem botar muita fé.
A pessoa que atendeu já foi logo dizendo:
"Olhe, amigo, não se trata de projetores de cinema, não, tá? Estamos
procurando projetores de outro tipo... Astrais, ok?"
"Bom, é desse tipo mesmo que eu sou", eu disse.
Marcaram uma hora para mim, deram-me o endereço e eu fui.
Lá fui apresentado ao entrevistador, que me explicou: "É o seguinte: estamos desenvolvendo um serviço de desobsessão bastante inovador, no qual o cliente obsediado nos contrata via Internet e nós enviamos agentes astrais para eliminar os encostos. A coisa funciona assim: damos ao senhor o nome de um cliente, o senhor vai lá, espanta o obsediador, e quando o cliente nos informa que está livre do carrego, nós lhe pagamos 100 reais. Interessa?"
Cocei a cabeça e perguntei: "Bom, e se o cara simplesmente não avisar vocês?"
"Bem, aí você volta lá e bota o obsessor de novo..."
"E aí não ganho nada?"
"Claro que não... Você é pago pra tirar obsessores, não pra colocar... certo?"
"É, me parece razoável... Quando eu começo?" E ele respondeu: "Calma... tem um pequeno teste. Diga aí, há quanto tempo o senhor se projeta?"
"Bem, na minha idade, tudo que eu faço já faço há muito tempo..."
"Certo... E tem boa orientação, lá no astral?"
"Acho que sim, outro dia tive a intenção de me projetar para o Japão e cheguei até o bairro da Liberdade, aqui em São Paulo. Como o senhor sabe, o que não falta por lá é japonês..."
"Ok. E qual é sua postura acerca da Cosmoética?" *
"O que é Cosmoética?"
"Ótimo... aprovado. Aqui está a foto do cliente e o endereço. O resto é com você..."
"Espera aí", comecei a dizer, "o endereço é no Rio de Janeiro..."
Mas vendo o olhar desconfiado que meu novo patrão me lançara, apressei-me a emendar:
"Se bem que distâncias não sejam nenhum problema para projetores
experientes..."
À noite, em vez de meditar sobre gravuras devocionais, fiquei mirando a foto digitalizada do Seu Silva, meu cliente. Era feio pra burro... Para ajudar na localização, adormeci cantarolando mentalmente "Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil..."
O que eu via agora, sob a opaca luz astral, era um apartamento de cobertura, de duvidosa mas caríssima decoração. Numa cama redonda, que se refletia no espelho do teto, dormia o Silva, mais feio ainda do que na foto, roncando feito um cão.
Perto dele, uma mulher que já fora bela, evidentemente desencarnada agora, olhava o relógio de pulso, impaciente para entrar em ação... Pronto... Eu havia conseguido chegar e já achara a obsessora... A grana estava no papo... Lembrando das técnicas aprendidas numa lista virtual de projeção astral, estendi as mãos e comecei a emanar uma luz rosa para cima da mulher, enquanto repetia "Xô, sai desse corpo que não te pertence, volta pro teu lugar..."
A moça nada. Mandei luz azul, verde, depois laranja... Ela nem tchuns. Uma certa hora ela voltou-se pra mim e disse:
"Ô amigo, será que o senhor não sabe que esse negócio de jogar luz funciona é com assediador? Assediadores são vampiros energéticos. Eu sou uma obsessora... O senhor não sabe a diferença? Não lê sobre esses assuntos?"
"Bem, confesso que eu prefiro mais é escrever... Mas quer dizer que não adianta, é? E a senhorita com certeza não vai me dizer o que é que funciona com obsessores, né?"
"Meu amigo, nada funciona contra obsessores, pois eles são parte integrante do próprio obsediado. Somos dívidas cármicas que os outros esqueceram de pagar. Aliás, o Silva é o maior caloteiro que eu conheço".
Não gostei muito de ouvir aquilo, mas ela continuou, com tristeza nos olhos: "Ah, se o senhor soubesse todo o mal que ele me fez... Não estou aqui por que quero, são coisas cármicas que têm que se cumprir"
E começou a desfiar sua história, de como o Silva havia prejudicado tanto a vida dela, explorando-a e expondo-a a todo tipo de agruras e acabando por deixá-la à morte, num hospital para indigentes.
A estas alturas eu, que normalmente sou um cara durão, já estava à beira das paralágrimas...
"Oh, não fique assim", disse ela. "De qualquer forma, esta é minha última noite como obsessora, amanhã vou ser substituída por um obsessor encarnado - um fiscal da receita federal..."
Penalizado, só queria fazer alguma coisa para ajudá-la, e assim eu lhe disse:
"Olha, não posso fazer muito por você, mas posso poupá-la de sua tarefa de hoje... Pode ir, deixe que eu mesmo cuido do Silva, esta noite..."
Surpresa, ela hesitou por um momento. Depois sorriu, agradecida, e começou a se desvanecer, até sumir. Então ficamos lá, o Silva ainda roncando, e eu.
Bom, a viagem não dera em nada, a grana da desobsessão e o meu novo emprego já tinham ido pro brejo e, para piorar, eu estava muito zangado com o Silva. Só havia uma coisa a fazer, para salvar a noite. Sem pressa, comecei a materializar um longo tridente.
- Bene -
- Nota: * Cosmoética: Código de Ética Cósmica, Paraética, Ética espiritual, Ética Superior.
"Precisamos projetores, com prática, que desejem faturar dinheiro extra, fone tal". Como andava na maior dureza, liguei para lá, oferecendo-me, mesmo sem botar muita fé.
A pessoa que atendeu já foi logo dizendo:
"Olhe, amigo, não se trata de projetores de cinema, não, tá? Estamos
procurando projetores de outro tipo... Astrais, ok?"
"Bom, é desse tipo mesmo que eu sou", eu disse.
Marcaram uma hora para mim, deram-me o endereço e eu fui.
Lá fui apresentado ao entrevistador, que me explicou: "É o seguinte: estamos desenvolvendo um serviço de desobsessão bastante inovador, no qual o cliente obsediado nos contrata via Internet e nós enviamos agentes astrais para eliminar os encostos. A coisa funciona assim: damos ao senhor o nome de um cliente, o senhor vai lá, espanta o obsediador, e quando o cliente nos informa que está livre do carrego, nós lhe pagamos 100 reais. Interessa?"
Cocei a cabeça e perguntei: "Bom, e se o cara simplesmente não avisar vocês?"
"Bem, aí você volta lá e bota o obsessor de novo..."
"E aí não ganho nada?"
"Claro que não... Você é pago pra tirar obsessores, não pra colocar... certo?"
"É, me parece razoável... Quando eu começo?" E ele respondeu: "Calma... tem um pequeno teste. Diga aí, há quanto tempo o senhor se projeta?"
"Bem, na minha idade, tudo que eu faço já faço há muito tempo..."
"Certo... E tem boa orientação, lá no astral?"
"Acho que sim, outro dia tive a intenção de me projetar para o Japão e cheguei até o bairro da Liberdade, aqui em São Paulo. Como o senhor sabe, o que não falta por lá é japonês..."
"Ok. E qual é sua postura acerca da Cosmoética?" *
"O que é Cosmoética?"
"Ótimo... aprovado. Aqui está a foto do cliente e o endereço. O resto é com você..."
"Espera aí", comecei a dizer, "o endereço é no Rio de Janeiro..."
Mas vendo o olhar desconfiado que meu novo patrão me lançara, apressei-me a emendar:
"Se bem que distâncias não sejam nenhum problema para projetores
experientes..."
À noite, em vez de meditar sobre gravuras devocionais, fiquei mirando a foto digitalizada do Seu Silva, meu cliente. Era feio pra burro... Para ajudar na localização, adormeci cantarolando mentalmente "Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil..."
O que eu via agora, sob a opaca luz astral, era um apartamento de cobertura, de duvidosa mas caríssima decoração. Numa cama redonda, que se refletia no espelho do teto, dormia o Silva, mais feio ainda do que na foto, roncando feito um cão.
Perto dele, uma mulher que já fora bela, evidentemente desencarnada agora, olhava o relógio de pulso, impaciente para entrar em ação... Pronto... Eu havia conseguido chegar e já achara a obsessora... A grana estava no papo... Lembrando das técnicas aprendidas numa lista virtual de projeção astral, estendi as mãos e comecei a emanar uma luz rosa para cima da mulher, enquanto repetia "Xô, sai desse corpo que não te pertence, volta pro teu lugar..."
A moça nada. Mandei luz azul, verde, depois laranja... Ela nem tchuns. Uma certa hora ela voltou-se pra mim e disse:
"Ô amigo, será que o senhor não sabe que esse negócio de jogar luz funciona é com assediador? Assediadores são vampiros energéticos. Eu sou uma obsessora... O senhor não sabe a diferença? Não lê sobre esses assuntos?"
"Bem, confesso que eu prefiro mais é escrever... Mas quer dizer que não adianta, é? E a senhorita com certeza não vai me dizer o que é que funciona com obsessores, né?"
"Meu amigo, nada funciona contra obsessores, pois eles são parte integrante do próprio obsediado. Somos dívidas cármicas que os outros esqueceram de pagar. Aliás, o Silva é o maior caloteiro que eu conheço".
Não gostei muito de ouvir aquilo, mas ela continuou, com tristeza nos olhos: "Ah, se o senhor soubesse todo o mal que ele me fez... Não estou aqui por que quero, são coisas cármicas que têm que se cumprir"
E começou a desfiar sua história, de como o Silva havia prejudicado tanto a vida dela, explorando-a e expondo-a a todo tipo de agruras e acabando por deixá-la à morte, num hospital para indigentes.
A estas alturas eu, que normalmente sou um cara durão, já estava à beira das paralágrimas...
"Oh, não fique assim", disse ela. "De qualquer forma, esta é minha última noite como obsessora, amanhã vou ser substituída por um obsessor encarnado - um fiscal da receita federal..."
Penalizado, só queria fazer alguma coisa para ajudá-la, e assim eu lhe disse:
"Olha, não posso fazer muito por você, mas posso poupá-la de sua tarefa de hoje... Pode ir, deixe que eu mesmo cuido do Silva, esta noite..."
Surpresa, ela hesitou por um momento. Depois sorriu, agradecida, e começou a se desvanecer, até sumir. Então ficamos lá, o Silva ainda roncando, e eu.
Bom, a viagem não dera em nada, a grana da desobsessão e o meu novo emprego já tinham ido pro brejo e, para piorar, eu estava muito zangado com o Silva. Só havia uma coisa a fazer, para salvar a noite. Sem pressa, comecei a materializar um longo tridente.
- Bene -
- Nota: * Cosmoética: Código de Ética Cósmica, Paraética, Ética espiritual, Ética Superior.