NOITES COR-DE-ROSA
(Conto)
Fechou a mensagem sem ler e desconectou-se da Internet, com raiva. Todos, naquela lista de projeção astral, podiam contar seus relatos, menos ele.
"Nhe-nhe-nhé, me projetei no umbral (1), bati no assediador extrafísico, levei uma chamada do amparador, saí rodopiando de quatro...”
Isso tudo era refresco... Queria ver como esses caras agiriam, pensou ele, se tivessem o SEU problema...
Nem sempre havia sido assim. Nas suas primeiras projeções extrafísicas aconteciam coisas estranhas, mas parecia que a coisa era assim mesmo, no dia seguinte nem se lembrava direito, e pronto.
Mas um dia, projetado num tipo de festa, no duplo extrafísico de um Instituto (logo no duplo do Instituto, onde todo mundo o conhecia!!!) olhou para baixo e viu os dois grandes seios, acomodados dentro de um colant cor de anil. Não tinha espelho por ali, mas podia vislumbrar longas madeixas de cabelos negros caindo-lhe pelos ombros. Ó horror! Estava travestido!
Na noite seguinte, agora vestindo um chemisier cinza-pérola e sandálias de saltos altos, prateadas, descobriu que a realidade astral era bem pior: não estava travestido, como pensara. Projetado, ele ERA uma mulher, mesmo. Com todos os detalhes. E olhando no espelhinho de maquiagem, teve que reconhecer que era uma mulher muito bem apanhada, aliás... Sacudiu a cabeça para parar de pensar besteiras, e tratou de volitar (2) bem rapidinho para longe dali, pois percebeu que já estava chamando a atenção de alguns assediadores de plantão, que matavam tempo por ali, esperando a hora de começar o turno.
Durante os dias seguintes só conseguia pensar naquilo. A coisa era séria. Ele não era disso, era hetero convicto, pelo menos achava que era...
E aí? Pedir socorro para AQUELA lista? Pedir orientação ÀQUELA turma? Ora, ia ser muita gozação em cima dele, tinha uma reputação a honrar... Resolveu então se consultar em “private” com um xamã eletrônico conhecido dele. Escreveu uma mensagem, com muitas evasivas, “tem acontecido com um amigo meu, sabe como é...”
A resposta, estimulando-o a “sair do armário” pareceu-lhe tão disparatada, que ele decidiu nem insistir. Não era uma questão de assumir ou não, ele não era disso, já dissera...
No fim de semana, abalado após uma noitada onde se vira tomando aulas astrais de flamenco - usando botinas negras de salto quadrado e bico finíssimo, contrastando com um xale vermelho de franjas, preso à cintura - decidiu-se abrir com um amigo, também projetor. Disfarçou, é claro - "Olha, foi só uma vez, mas me vi projetado como mulher... Uma mulher feiosa, até..."
"Ah, isso acontece”, disse o outro, "é apenas sua ânima, se manifestando... Ânima (3) é o lado feminino dos homens. O lado masculino das mulheres se chama animus... Nunca leu Jung?"
"Que Jung, que ânima, que nada..., acha que eu tenho dessas frescuras, é? Isso foi é onirismo. O-NI-RIS-MO (4) , tá sabendo?", e encerrou o assunto, irritado.
A coisa continuava e ele tentou de tudo. Decidiu não se projetar mais, e para isto dormia com um despertador, que o acordava de hora em hora. Foi pior, pois nas mini-projeções que tinha entre um soninho e outro, via-se em todas suas versões femininas - ora de biquini, ora com um elegante coque nos cabelos, sentada num banco, chupando (Ó DEUS...) um picolé de morango...
A princípio aquilo tudo o desgastou muito. Perdeu o apetite, deixou a barba crescer para se reafirmar, começou a errar nos balancetes (era contador, no mundo físico)... Mas o pior era não ter pra quem contar (para a namorada? para os amigos? Nem pensar...) - Viver sem dormir não podia, e dormir sem se projetar não conseguia...
E assim achou que o melhor era deixar o barco ir correndo, fazendo de conta que nada aquilo acontecia, para ver se aquela agonia terminava, algum dia.
E como a gente acaba acostumando com quase tudo, nesta vida, numa certa quarta-feira foi dormir mais cedo - tinha aula astral de etiqueta, naquele dia...
- Bene -
- Notas:
1. Umbral: Plano extrafísico denso; Plano astral inferior; Plano espiritual atrasado.
2. Volitar: Voar.
3. Anima (do latim “Animus”): Alma.
4. Onirismo: Relativo aos sonhos, que são vivências oníricas produzidas pela mente para descarregar a psique (alma).
Fechou a mensagem sem ler e desconectou-se da Internet, com raiva. Todos, naquela lista de projeção astral, podiam contar seus relatos, menos ele.
"Nhe-nhe-nhé, me projetei no umbral (1), bati no assediador extrafísico, levei uma chamada do amparador, saí rodopiando de quatro...”
Isso tudo era refresco... Queria ver como esses caras agiriam, pensou ele, se tivessem o SEU problema...
Nem sempre havia sido assim. Nas suas primeiras projeções extrafísicas aconteciam coisas estranhas, mas parecia que a coisa era assim mesmo, no dia seguinte nem se lembrava direito, e pronto.
Mas um dia, projetado num tipo de festa, no duplo extrafísico de um Instituto (logo no duplo do Instituto, onde todo mundo o conhecia!!!) olhou para baixo e viu os dois grandes seios, acomodados dentro de um colant cor de anil. Não tinha espelho por ali, mas podia vislumbrar longas madeixas de cabelos negros caindo-lhe pelos ombros. Ó horror! Estava travestido!
Na noite seguinte, agora vestindo um chemisier cinza-pérola e sandálias de saltos altos, prateadas, descobriu que a realidade astral era bem pior: não estava travestido, como pensara. Projetado, ele ERA uma mulher, mesmo. Com todos os detalhes. E olhando no espelhinho de maquiagem, teve que reconhecer que era uma mulher muito bem apanhada, aliás... Sacudiu a cabeça para parar de pensar besteiras, e tratou de volitar (2) bem rapidinho para longe dali, pois percebeu que já estava chamando a atenção de alguns assediadores de plantão, que matavam tempo por ali, esperando a hora de começar o turno.
Durante os dias seguintes só conseguia pensar naquilo. A coisa era séria. Ele não era disso, era hetero convicto, pelo menos achava que era...
E aí? Pedir socorro para AQUELA lista? Pedir orientação ÀQUELA turma? Ora, ia ser muita gozação em cima dele, tinha uma reputação a honrar... Resolveu então se consultar em “private” com um xamã eletrônico conhecido dele. Escreveu uma mensagem, com muitas evasivas, “tem acontecido com um amigo meu, sabe como é...”
A resposta, estimulando-o a “sair do armário” pareceu-lhe tão disparatada, que ele decidiu nem insistir. Não era uma questão de assumir ou não, ele não era disso, já dissera...
No fim de semana, abalado após uma noitada onde se vira tomando aulas astrais de flamenco - usando botinas negras de salto quadrado e bico finíssimo, contrastando com um xale vermelho de franjas, preso à cintura - decidiu-se abrir com um amigo, também projetor. Disfarçou, é claro - "Olha, foi só uma vez, mas me vi projetado como mulher... Uma mulher feiosa, até..."
"Ah, isso acontece”, disse o outro, "é apenas sua ânima, se manifestando... Ânima (3) é o lado feminino dos homens. O lado masculino das mulheres se chama animus... Nunca leu Jung?"
"Que Jung, que ânima, que nada..., acha que eu tenho dessas frescuras, é? Isso foi é onirismo. O-NI-RIS-MO (4) , tá sabendo?", e encerrou o assunto, irritado.
A coisa continuava e ele tentou de tudo. Decidiu não se projetar mais, e para isto dormia com um despertador, que o acordava de hora em hora. Foi pior, pois nas mini-projeções que tinha entre um soninho e outro, via-se em todas suas versões femininas - ora de biquini, ora com um elegante coque nos cabelos, sentada num banco, chupando (Ó DEUS...) um picolé de morango...
A princípio aquilo tudo o desgastou muito. Perdeu o apetite, deixou a barba crescer para se reafirmar, começou a errar nos balancetes (era contador, no mundo físico)... Mas o pior era não ter pra quem contar (para a namorada? para os amigos? Nem pensar...) - Viver sem dormir não podia, e dormir sem se projetar não conseguia...
E assim achou que o melhor era deixar o barco ir correndo, fazendo de conta que nada aquilo acontecia, para ver se aquela agonia terminava, algum dia.
E como a gente acaba acostumando com quase tudo, nesta vida, numa certa quarta-feira foi dormir mais cedo - tinha aula astral de etiqueta, naquele dia...
- Bene -
- Notas:
1. Umbral: Plano extrafísico denso; Plano astral inferior; Plano espiritual atrasado.
2. Volitar: Voar.
3. Anima (do latim “Animus”): Alma.
4. Onirismo: Relativo aos sonhos, que são vivências oníricas produzidas pela mente para descarregar a psique (alma).