ATRÁS DO TRIO ELÉTRICO (´SÓ NÃO VAI QUEM JÁ MORREU...´)

Cada fase da vida tem, naturalmente, sua própria dinâmica. Só que até determinada fase, procuramos olhar o mundo com intimidade e depois, com o passar dos anos, nos pegamos olhando o mundo com distância. Isso é ruim? Não sei. É o que estou tentando desnudar e compreender com a alma. Principalmente a fase que considero das mais complexas: a dos cinquentões. Obviamente que estou incluída neles.

Para não perder meu péssimo hábito de analisar comportamento humano, me pego despertando dos meus abusivos pensamentos com uma fascinante tese, em pleno Carnaval, confortavelmente instalada em um camarote no Campo Grande, tendo a minha frente uma multidão enlouquecida, gritando e pulando num único coro sob a batuta eletrizante de Ivete Sangalo, inclusive eu, num "levantar poeira" fascinante.
Eu não estava ali para pensar, mas para curtir, dançar, pular, cantar, enfim; fazer o que se supõe que todos os seres humanos, fazem nestes dias de euforia e ou folia carnavalesca. Mas não, eu tinha que está ali pensando, olhando. Porque meus olhos não viam simplesmente aquela alegria tribal e fantástica que todos insistiam em mostrar?

Resolvi comer. Peguei Yakisoba e fui me sentar lá no fundo para me deliciar calmamente longe dos olhos reprovadores da minha filha, que insistia em me lembrar que estou de dieta até na terça-feira de carnaval. Mas os benditos pensamentos não me davam trégua, nem naquela condição tão pagã de carnaval.

Ali na minha frente estava um homem que conheci na adolescência, elegante, de fino trato. Tipo cinquentão bem sucedido, acompanhado de uma jovem mulher bonita. Aliás, o que ultimamente não falta para se ver são exatamente mulheres bonitas e siliconizadas, no carnaval então, é só o que se vê... Nada contra, muito pelo contrário, acho mesmo é que as mulheres têm mesmo que ficarem lindas para si mesmas e depois para seus homens, e vice-versa.

Mas os meus pensamentos não vão por ai, é uma outra abordagem; mais ampla, mais filosófica, mais questionadora.

Aquele homem aparentava uma virilidade espremida, forjada, incômoda. Sua dança era sem gosto, sem gasto, sem alma, sem tesão. Seu sorriso era de cera sem cor. Aliás, ele era apenas uma pequena amostra de tantos outros tipos iguais a ele, que insistiam (sob efeito alcoólico) em tentar mostrar alegria .

Perguntei-me: “Onde está aquele jovem da década de 60, que deu forma aos seus ideais em luta desmedida e destemida? Como estarão suas crenças e seus desejos de mudanças e democracia? Sua alma revoltada com o sistema político e religioso, onde estava? Onde estava seu olhar de estudante desafiante e desafiador? Será que a sua jovem companheira seria capaz de conhecer aquele homem ao seu lado? Conhecer sim, pois tudo se sabe a respeito dos anos 60. Os livros de história contam, os professores gatos dos cursinhos de pré-vestibular falam a respeito, afinal, a revolução pode ser assunto de vestibular. Mas, pensando bem, é melhor não. É melhor que não passe de um breve relato de quem foi jovem nos anos 60.”

Até o nosso imortal João Ubaldo Ribeiro deu suas puladinhas miconicas com Caetano em cima do trio elétrico.

Mas que geração é essa, que brigou, gritou tanto por direitos humanos, por amor livre, por liberdade de expressão, e que graças aos deuses conseguimos?

Já conseguimos até votar em Presidente da República! Nossos filhos já recebem informações a respeito de sexo seguro até pela televisão... Minha neta de seis anos perguntou se nós já havíamos comprado camisinhas para colocar nas latinhas de refrigerante no carnaval para não pegarmos doença que mata, e isso ela aprendeu na televisão. E fomos nós, essa geração virtuosa de grandes guerreiros, que conseguimos tudo isso...

Nós só não conseguimos aprender a reaver e a reciclar a moralidade e a cidadania. Também para que? Nós éramos prafrentex...

Leila Diniz maravilhosa já dizia que “ser jovem é ousar, é ser livre e contestar”. Contestar tudo, mesmo sem saber porque, mas é importante contestar...

No entanto, o senhor Cronos passou e essa geração de libertos guerreiros se percebeu envelhecendo, e agora?

Como diria Carlos Drumonnd de Andrade:
“E agora, José?”
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, José?
E agora, José?
Você que é sem nome, que zomba dos outros; você que faz versos, que ama, protesta?
E agora, José?”.

Na sua grande maioria esse pessoal ficou perdido nas suas próprias crenças filosóficas, e o que é pior, exauridos nas suas sexualidades livres e contestadoras.

Minha avó costumava dizer que: “Envelhecer é um processo cultural”, e eu no alto da sabedoria dos meus quinze anos, para variar contestava, e ela dizia:

“Espere ter cinqüenta anos e entenderá, é o que espero, que entenda...”

E neste carnaval eu entendi!

Sem moralismo, sem hipocrisia, tentei fazer um paralelo entre o ontem e o hoje, entre o jovem que andava “sem lenço e sem documentos”, e o cinquentão que hoje corre atrás do trio elétrico, só pra provar que ainda não morreu.

Não é fácil brincar com palavras, falando de uma geração que fez da sua própria mudança uma revolução, e que foi preciso “caminhar contra o vento”, para se encontrar.

Podes crer, foi difícil! Mas o sonho não acabou, e vamos à luta, companheiros, pois é legal viver! É uma brasa mora?

- Graça Lúcia Azevedo / Senhora Telucama -
Salvador, Carnaval de 2004.

“A arte de ser sábio é a arte de saber o que tolerar.”

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