FRANCISCO DE ASSIS - O DEVOTO PERFEITO

O mais famoso de todos os santos ainda hoje representa um exemplo de vida e de amor aos ensinamentos de Jesus Cisto, deixando marcas profundas não apenas no catolicismo, mas em toda a religiosidade ocidental.

Quem ainda não assistiu ao filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zefirelli, lançado na década de 70 e já exibido tantas vezes nas telinhas brasileiras? Apesar da licença poética usada para narrar a vida do mais famoso de todos os santos, o diretor Zefirelli conseguiu retratar de forma impecável a profunda transformação por que passou o jovem alegre e festeiro, que acabaria se tornando um dos maiores exemplos de devoção espiritual e santidade de todos os tempos.

Giovanni di Pietro di Bernardone, nome verdadeiro de São Francisco, nasceu em 1181 ou 1182 na pequenina e poética cidade de Assis, Itália, situada nos Apeninos. Seu pai foi Pedro Bernardone - um comerciante usurário - e sua mãe uma dama de origem francesa chamada Pica. Narra uma lenda que esta, sentindo as dores do parto, não conseguia dar à luz. Para que o bebê viesse ao mundo, Pica teve de ser transportada até a estrebaria da casa, onde deu à luz à semelhança da mãe de Cristo, sobre a palha, entre um asno e um boi.

No batizado, o bebê recebeu o nome de Giovanni, escolhido pela mãe e parentes. O pai, que se encontrava ausente numa viagem de negócios pela França, quando regressou, decidiu mudar o nome do menino para Francisco.

Poucos exerceram influência tão determinante na história civil e espiritual de seu tempo como o santo Helcio de Carvalho de Assis, e poucos terão levado as máximas evangélicas tão longe quanto esse homem, que conseguiu total identificação com o Jesus Cristo crucificado - a ponto de receber no próprio corpo os estigmas da Paixão.
Contato com Deus

Até hoje pouco se sabe sobre a infância do santo. A obra Legenda de São Francisco (ou Dos Três Amigos), escrita por três de seus primeiros discípulos, revela que, já crescido, como era dotado de inteligência viva, Francisco estava disposto a continuar o ofício do pai sendo mercador. Contudo, muito mais alegre e liberal do que o velho Bernardone, sua maior felicidade era cantar e se divertir com os amigos pelas ruas da cidade, e era tão esbanjador que gastava tudo que ganhava em reuniões e banquetes. Apesar disso, São Boaventura, terceiro geral dos franciscanos, contemporâneo do santo, explica que, auxiliado pelo divino, ele ` jamais se deixou levar pelo ardor das paixões que dominavam os jovens de sua companhia".

Na verdade, o próprio Francisco confessa sobre o período anterior à sua conversão: "Eu verdadeiramente creio nunca haver, por graça de Deus, cometido falta sem ter feito disso expiação, confessando 0 meu pecado e arrependendo-me da minha culpa."
Depois de uma séria doença em 1202, durante a qual se tornou profundamente insatisfeito com seu modo de vida, o jovem comerciante partiu em uma expedição militar, mas caiu doente no primeiro dia e teve de retornar. Seu desapontamento trouxe outra vez a crise espiritual que ele havia experimentado durante a primeira enfermidade.

Certo dia, depois de preparar um banquete para os amigos e sair festejando pelas ruas, Francisco desapareceu. Depois de procurá-lo por algum tempo, os companheiros o encontraram em uma espécie de transe, totalmente mudado.

Um dos episódios mais marcantes de sua vida aconteceu logo após sua primeira viagem, em peregrinação a Roma. Tendo verdadeiro horror a leprosos, ele passou por um mendigo que tinha a doença. Imediatamente, em um verdadeiro ato de autocontrole o rapaz deu meia volta, entregou ao mendigo todo o dinheiro que tinha e beijou sua mão. A partir de então, o jovem passou a servir os leprosos e doentes nos hospitais.

Da Fama à Pobreza

A popularidade que Francisco tinha adquirido entre seus conterrâneos devia-se mais às suas qualidades morais que físicas, pois, segundo seus amigos, ele "era pequeno e de aspecto miserável", atraindo pouca atenção daqueles que não o conheciam.

Certo dia, rezando na pequena igreja semidestruída de São Damião, Francisco ouviu um Cristo crucificado pedir-lhe que "restaurasse Sua casa que estava em ruínas". Acreditando que tais palavras faziam referência à capela em que se encontrava, ele se empenhou literalmente em reformar não só a Igreja de São Damião, mas também dois outros templos. Foi quando o Plano Superior voltou a lhe falar, pedindo que ele restaurasse não só os edifícios das igrejas, mas a própria Igreja enquanto instituição.

Nesse mesmo dia, ele ouviu de Cristo: "Se queres conhecer a minha vontade, precisas desprezar todas as coisas que até aqui materialmente amaste e desejaste. Quando tiveres feito isto, ser-te-á agradável tudo quanto te é insuportável e se tornar insuportável tudo quanto desejas"

Foi então que Pedro Bernardon decidiu intervir nos acontecimentos. Ele tinha certeza de que seu filho havia enlouquecido, pois estava dando de esmola todas as suas posses.

Revoltado, o comerciante resolve arrastar o rapaz até o bispo para se legalmente deserdado. Sem espere que os documentos fossem assinados, Francisco, numa atitude extremamente ousada, despiu-se em praça pública e entregou ao pai as únicas posses que ainda lhe restavam seu sobrenome e a roupa do corpo. Sob o olhar atônito das pessoas, ele foi coberto com uma capa do bispo deixou a cidade rumo às florestas do Monte Subasio, para dedicar-se de corpo e alma à sublime tarefa de se tornar um instrumento da paz divina.


Frades Menores
Pouco a pouco, seu modo de vida austero passou a incomodar os nobres de Assis, principalmente porque outros jovens começaram a admira-lo, ansiando alcançar a mesma experiência direta com o Divino. Ainda tido como louco por alguns, considerado um anarquista por outros, o jovem santo continuou firme em seu caminho e missão de resgatar alma para a verdadeira religião, na qual Deus deixava de ser propriedade exclusiva do clero e se tornava acessivel dentro do coração.

Quando já contava com um pequeno e sólido grupo partilhando a mesma vida de pobreza, castidade, obediência, o humilde Francisco decidiu que eles se chamariam Frade Menores. Surgiram assim os primeiros doze discípulos que, segundo o iluminado escreveu mais tarde em seu Testamento, "foram homens de tão grande santidade que, desde o Apóstolos, não viu o mundo seres tão maravilhosos e santos. Aqueles que vinham abraçar nossa vida distribuíam aos pobres tudo o que tinham. Contentavam-se com uma só túnica, uma corda e um par de calções, e não queriam mais nada".

Os novos apóstolos reuniram-se em torno da pequena igreja da Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, que se tornou o berço da Ordem.

Constante Alegria

Buscando obter a aprovação de sua ainda incipiente Ordem, Francisco dirigiu-se a Roma buscando uma audiência com o Papa Inocêncio III. E sem dúvida não foi por mera coincidência que, dias antes, o Pontífice sonhou com a basílica de Latrão prestes a ruir e um homem pequeno, de aspecto pobre, sustentando-a nos ombros. No momento em que viu o santo de Assis, o Papa reconheceu-o, abraçou-o e disse a ele e seus companheiros: "Irmãos, ide com Deus e pregai a penitência segundo vos será inspirado".

Munidos dessa aprovação pontifícia, os novos religiosos saíram para pregar, em duplas, percorrendo as cidades da região e mostrando aos seus habitantes, pela palavra e pelo exemplo, o caminho da união com Deus.

Um dos pontos mais notáveis na personalidade do Pobrezinho de Assis era sua constante alegria - aliás, a alegria era um dos maiores preceitos de sua Ordem. Seu amor aos animais e à natureza era notável e se manifestava de inúmeras formas. Sua pregação aos pássaros é um tema muito abordado na arte. Ele chamava a todas as criaturas de "irmãos" e "irmãs", e no poema Cântico do Irmão Sol ele evoca o Irmão Sol, a Irmã Lua, o Irmão Vento e a Irmã Água para glorificar a Deus. Em sua última doença, seus olhos tiveram de ser cauterizados. Vendo o ferro ardente, ele se dirigiu ao "Irmão Fogo", pedindo que este fosse delicado para com ele. O ferro em brasa tocou sua carne e Francisco nada sentiu.

Certa noite, os frades viram um esplendoroso carro de fogo, com um globo brilhante parecido com o Sol, entrar pelo aposento em que estavam, dando três voltas no recinto. Na mesma hora eles compreenderam que Deus estava lhes mostrando, por aquela figura, que Francisco tinha vindo no espírito e na força do profeta Elias. Desde então, o santo passou a penetrar nos segredos de seus corações, predizer o futuro e realizar milagres. Estava patente para todos que o espírito de Elias, duas vezes mais poderoso, manifestava-se nele com tal força que o melhor para todos era seguir seus ensinamentos.

Francisco manifestava seu amor a Deus por uma alegria imensa, que muitas vezes se expressava em cânticos ardorosos. A quem lhe perguntava a razão de tal alegria, ele respondia que aquilo era fruto da pureza do coração e da constância na oração. Essa verdadeira divina loucura, que lhe angariou muitos discípulos, acabou também atraindo a filha do Conde de Sasso Rosso, Clara, de 17 anos. Desde o momento em que ouviu o Pobrezinho pregar, a jovem compreendeu que ele indicava a vida que Deus queria para ela. Francisco tornou-se seu guia e mentor espiritual de sua alma.

Como os pais tinham outros planos para Clara, ela precisou fugir para a igrejinha da Porciúncula, onde Francisco cortou-lhe os cabelos e a fez vestir um simples hábito. Nascia assim a Ordem Segunda dos Franciscanos, a das Clarissas.

Dissabores

Para dominar os desejos de seu "eu" inferior, o santo chegava a flagelar ,eu corpo. Certa vez, sentindo a torça das tentações que o acometiam. ele entrou em uma caverna cheia de neve e fincou os pés descalços no gelo. Não foi suficiente. Ele retirou a corda de sua cintura e passou a se chicotear. Não foi suficiente. Ele, então, despiu-se e começou a rolar pela neve, conseguindo finalmente mostrar a seus instintos mais baixos quem realmente estava no comando.

Contudo, somando todos os sofrimentos físicos a que se submeteu por vontade própria, a dor de nenhum deles foi maior do que ver surgir uma nova tendência entre seus frades, chefiada pelo Superior Frei Elias. Elias estava dando à Ordem uma orientação diferente da do santo, principalmente em relação aos estudos e ao modo de se observar a pobreza. Francisco chegou a amaldiçoar Frei Pedro de Stacia, um dos frades dessa nova linha. Por fim, vendo que tantos leigos queriam pertencer à sua família de almas, mas não podiam observar inteiramente as regras franciscanas por serem casados ou possuir outros encargos terrenos, Francisco fundou uma Ordem Terceira, capaz de abrangera todos. Muitos grandes personagens - como São Luís, Rei da França, e Santa Isabel, Duquesa da Turíngia - a ela pertenceram.

À medida que crescia o número de frades, o trabalho destes passou a se estender para outros países. Em 1212, o próprio Francisco partiu rumo à Terra Santa, mas seu navio teve problemas e ele foi forçado a retornar. Em 1219, ele viajou para o Egito, onde os cruzados haviam cercado Damietta. Aprisionado, o santo foi conduzido até o sultão, a quem falou sobre a experiência do Divino. Profundamente tocado, o soberano enviou-o de volta ao acampamento dos cristãos, e ele acabou chegando a Jerusalém, onde permaneceu até setembro de 1220.

Quando retornou à Itália, Francisco descobriu que os problemas com a Ordem haviam crescido demais em sua ausência, a tal ponto que ele decidiu afastar-se de seu posto como ministro geral dos frades. Durante a abdicação do cargo, ele disse: "Senhor, eu te devolvo a família que a mim confiaste. Tu sabes, doce Jesus, que não tenho mais a força e qualidades necessárias para continuar cuidando dela. Assim sendo, eu a confio aos ministros. Que eles sejam responsáveis ante Ti, no Dia do Julgamento, se qualquer irmão, por sua negligência ou mau exemplo, ou por castigo severo demais, desviar-se do caminho". Com essas palavras, o santo de Assis deixava evidente que sua inspiração espiritual jamais se encaixaria no governo de uma sociedade religiosa de proporções tão grandes.

Os Estigmas

Dois anos antes de sua morte, o santo de Assis foi até o Monte Alverne em companhia de alguns de seus frades mais íntimos. Após quarenta dias de jejum, oração e contemplação, no dia 14 de setembro de 1224, segundo as palavras de Sabatier, "ele teve uma visão: em meio aos raios do sol nascente, Francisco percebeu uma estranha figura. Um Serafim de asas estendidas voou em sua direção e o inundou com um prazer indescritível. No centro da visão apareceu uma cruz, e o Serafim estava pregado a ela. Quando a visão sumiu, Francisco sentiu dores agudas mescladas ao deleite dos primeiros momentos. Perturbado, ele ansiosamente buscou o significado daquilo, e foi então que viu, impressos em seu corpo, os estigmas da Paixão".

Foi assim que esse discípulo tão fiel obteve a maior de todas as graças: um profundo traço de similitude com seu divino mestre. Contudo, de tão humilde que era, ele jamais mostrou as marcas sagradas a ninguém. Apenas seus discípulos mais próximos conseguiram ver os estigmas, e só quando ele abandonou o corpo rumo à Morada Suprema.

Os dois anos que se seguiram até sua morte foram repletos de feitos extraordinários. Apesar de muito doente no aspecto físico, Francisco mergulhava cada vez mais no espírito, promovendo curas e inúmeros milagres. Não era incomum algumas vezes, quando estava em profunda contemplação, o santo levitar. Em certa ocasião, ele havia subido tão alto que praticamente encostou a cabeça no teto de uma igreja.

Em sua última doença e já próximo da morte, Francisco pediu desculpas ao próprio corpo por ter infligido a ele tantos castigos. A Frei Ângelo e Frei Leão o santo pediu que ambos permanecessem junto a seu leito para cantar os louvores da "Irmã Morte". Para aqueles que se escandalizavam com essa atitude, ele respondia: "Por graça do Espírito Santo, sinto-me tão profundamente unido ao meu Senhor Deus, que não posso deixar de me alegrar n´Ele".

Por fim, tendo sido realizados em sua vida todos os planos do Criador, o bem-aventurado adormeceu rezando e cantando um salmo, no dia 4 de outubro de 1226, aos 45 anos, sendo canonizado apenas dois anos depois pelo Papa Gregório IX.

Cântico do Irmao Sol

Quase cego, sozinho numa cabana de palha, em estado febril e atormentado pelos ratos, São Francisco deixou para a humanidade este canto de amor ao Pai de toda a Criação. A penúltima estrofe, que exalta o perdão e a paz, foi composta em julho de 1226, no palácio episcopal de Assis, para pôr fim a uma desavença entre o bispo e o prefeito da cidade. Estes poucos versos bastaram para impelira guerra civil. A última estrofe, que acolhe a morte, foi composta pouco antes deles morrer.

O Cântico ao Irmão Sol representa um dos mais importantes documentos literários de São Francisco, redigido em italiano antigo - língua em que ele certamente ditou a maioria dos seus escritos, antes que os irmãos versados em letras os traduzissem para o latim, a linguagem mais comum da época.

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.

Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor Irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
Ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela Irmã Lua e pelas Estrelas,
Que no céu formastes claras,
Preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo Irmão Vento,
Pelo ar, nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde,
E preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo,
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo,
E vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos,
E coloridas flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por Teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que sustentam a Paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à Tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!

Louvai e bendizei ao meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.



Revista Sexto Sentido
Número 33
Páginas 22-27

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